Guerra às drogas

Suspeitos são mortos deitados, algemados ou quando trabalhavam

In this picture taken on September 28, 2016, residents react near a crime scene where three alleged drug dealer were killed after a drug raid in a shanty community in Manila. Philippine President Rodrigo Duterte defended his threat to kill criminals as Noel Celis - 28.set.2016/AFP
Moradores de Tondo, uma das regiões mais pobres de Manila, observam vítima de operação antidrogas

Com febre, Rogie Sebastian, 32, voltou mais cedo de seu trabalho no dia 19 de setembro. Tomou um paracetamol, deitou-se e foi morto às 16h30.

Segundo a viúva, Ruth Jane, 15 policiais cercaram o barraco em que estava o motorista de pedicab (carrinho puxado por bicicleta, usado como táxi).

Três dos agentes —"um era mulher"—, entraram na casa vestindo máscaras. Ruth, 40, grávida de sete meses, cuidava do filho de dois anos e a filha de um.

Os policiais perguntaram por Fernand, dono da casa e alvo da operação, segundo Ruth. Atiraram na perna de Rogie na frente da mulher e das crianças, depois afastadas para o final da rua.

Rogie, que segundo a viúva havia parado de usar shabu (metanfetamina) desde que Duterte foi eleito, levou quatro tiros, ainda deitado. No barraco de madeira ficaram as botas de couro que ele usava.

Vincent Go - 31.out.2016/Folhapress
Ruth Jane Sombrio, 41, grávida de sete meses, no barraco em que seu marido Rogie Sebastian, 30, foi morto pela polícia, na rua San Miguel, em Tondo, uma das áreas mais pobres de Manila
Ruth Jane no barraco em que seu marido foi morto pela polícia

O relatório da estação de polícia número 11, responsável pela operação, conta outra história.

O motorista é descrito como "notório traficante", com o qual teriam sido encontrados três sachês de metanfetamina, 200 pesos em notas marcadas (usadas por policiais que se fazem passar como compradores de droga) e um revólver calibre 38.

Os agentes dizem que, ao suspeitar de uma armadilha, Rogie sacou o revólver e atirou duas vezes (sem, porém, ferir o policial disfarçado). Para se defender, o policial revidou com quatro tiros.

Ruth diz que marido ganhava 700 pesos por dia (cerca de R$ 70), dos quais descontava os 120 do aluguel do veículo, e não era dono da arma encontrada na cintura de sua calça depois que ele foi morto.

Com medo de também ser morta, passou a dormir com as crianças em frente à escola Pedro Guevara, a cerca de um quilômetro de sua casa.

Ana Estela de Sousa Pinto - 31.out.2016/Folhapress
Menino toma banho e mulher lava roupa em favela na região de Tondo,, uma das com mais vítimas na guerra do presidente Duterte contra as drogas nas Filipinas
Menino toma banho em rua de Tondo em que quatro já foram mortos pela polícia

É em Tondo, onde mora Ruth, que se concentra a maioria das vítimas da guerra às drogas.

A região de Manila, ao norte do rio Pasig, tem uma das maiores concentrações populacionais do mundo.

São mais de 600 mil pessoas vivendo em cerca de 9 quilômetros quadrados (seis vezes a área de Paraisópolis, em São Paulo, dez vezes a da Rocinha, no Rio, ou o equivalente a três complexos do Alemão).

É um índice de quase 70 mil pessoas por quilômetro quadrado —dez vezes a densidade populacional de São Paulo e 60% acima da cidade mais populosa do mundo, Daca, a capital de Bangladesh.

A visão dos milhares de barracos de tábuas, folhas de metal e plástico impressona. Em Tondo estão mais de 50 mil residências —mais da metade das 80 mil residências de Manila.

Na região metropolitana da capital, estima-se que 4 milhões de pessoas vivam em favelas (37% da população, mais que o triplo dos que vivem em comunidades do Rio).

Reprodução
Favela é construída em todo o espaço ao redor e atrás do Ospital ng Tondo (Hospital de Tondo), na barangay 126, em Tondo, bem ao lado da estação de polícia número 7. Nessa favela morava Jack Mendonza, que foi morto pelo esquadrão da morte na cidade de Caloocan, Grande Manila, onde trabalhava como barker (pessoa que fica chamando passageiros para embarcar nos jeepneys). Suspeito de vender drogas, Jack foi morto com um tiro na cabeça, no meio da rua, no dia 11 de outubro de 2016.
Fachada do Hospital de Tondo, ao redor do qual foi construída favela

Mesmo em ruas com residências ou edifícios de alvenaria, os barracos ocupam espaços livres entre um edifício e outro.

Na avenida Abade Santos, a 50 metros da estação de polícia 7, todo o entorno do Hospital de Tondo foi ocupado. Archimedez Mendoza, conhecido como Jack, morava num dos cerca de 50 barracos de madeira que se espremem entre duas paredes.

Às 9h50 de 11 de outubro de 2016, ele trabalhava em Caloocan, Grande Manila, como barker —chamava passageiros para embarcar nos jeepneys, miniônibus sobre chassis de jeeps, mais um dos vários veículos coletivos improvisados que circulam pelo caótico trânsito de Manila.

Suspeito de vender drogas, foi morto com um tiro na cabeça, no meio da rua.

Os relatórios das operações atribuem essas mortes a reações dos policiais em legítima defesa após o suspeito ter atirado —quase sempre sem acertar o alvo.

Para cada 125 suspeitos mortos pela polícia de julho ao começo de dezembro, houve uma morte de policial ou militar. Além dessa discrepância, há outros indícios fortes de abuso de poder.

Aaron Favila - 6.set.2016/Associated Press
In this Friday Sept. 6, 2016 photo, an alleged drug suspect lies on the ground beside a gun after he and his companion were killed by police as they tried to evade a checkpoint as part of the continuing
Revólver calibre 38 ao lado de suspeito morto em operação policial

Em setembro, Francisco Santiago, baleado pela polícia no que eles afirmaram ser um tiroteio após reação, acabou sobrevivendo e relatando ter sido forçado a confessar envolvimento com drogas, colocado num carro até a rua em que foi baleado.

Câmeras de vigilância comprovam sua versão.

Em Tondo, em outubro, um suspeito já algemado foi morto por policiais diante de jornalistas.

E ao menos dois vídeos levantam suspeitas sobre a polícia.

No dia 24 de agosto à 1h, a babá Josefine, 47, dormia em seu barraco com os seis filhos e a mãe quando começou a ouvir gritos.

Policiais perseguiam um vizinho, o motorista de pedicab Erik Sison, 22. Minutos depois, Sison despencou dentro de sua casa, sangrando, contou ela à Folha.

Arrastou-se até o canto do barraco e se cobriu com os panos que conseguiu agarrar.

"A polícia gritava do lado de fora. Eu dizia que estavam só mulheres e crianças, que nos deixassem sair", diz a moradora de Pasay (região metropolitana de Manila), que foi afastada para o final da rua.

Na gravação feita em smartphone por um vizinho é possível ouvir o que ocorreu em seguida:

Policial: "Não tem mais ninguém aqui?"

Polícial: "No fundo, no fundo!"

Policial: "Vou contar até três. Se não sair, atiro"

Policial: "Onde? Onde? Onde?"

Policial: "No fundo, bem no fundo."

Policial: "Ele está ferido, vai sair.

Policial: "Seu filho da puta (para Erik)"

Policial: "Ali, ali tem sangue"

Mulher: "Irmão, por favor, não! Não atire!"

Policial: "Cuide da sua vida!"

Policial: "Vou contar até três. Se não sair, atiro"

Erik: "Eu estou aqui. Eu me rendo. Estou me rendendo"

Seguem-se dez tiros.

A família pretendia prestar queixa, mas desistiu depois que um amigo foi morto quando saída da casa deles.

Josefine diz que sua filha de 17 anos ficou traumatizada e não tem conseguido dormir.

Ela reconhece que há usuários de drogas e vendedores na região, e que muita gente vem de outros lugares da cidade para comprar shabu, mesmo depois da repressão promovida por Duterte.

Ana Estela de Sousa Pinto - 1º.nov.2016/Folhapress
Favela em que Erik Sison foi morto pela polícia com dez tiros, dentro do barraco em que mora uma vizinha com seis filhos, de 10 a 19 anos, e a mãe, na rua F. Munoz, em Pasay (região metropolitana de Manila); um vídeo feito pelo vizinho da frente registra Erik sendo morto mesmo depois de ter se rendido
Favela em que morava Erik Sison, em Pasay, Grande Manila

Outro caso registrado em vídeo foi o de Bernardo Visda, que foi mostrado já morto por policiais ao lado da Estação de Polícia 1, em Tondo.

O cadáver está algemado (foto ao lado), mas a polícia disse aos jornalistas que ele foi morto ao tentar pegar a arma do coldre de um dos agentes.

Um vídeo de câmera de segurança, no entanto, mostra Visda sendo algemado e levado por ao menos três duplas de motoqueiros, para desespero de parentes e vizinhos, que saem correndo atrás das motos.

No Dia dos Mortos, a família de Erik pretendia visitar cedo seu túmulo, no cemitério de Pasay, mas foi atrasada pela visita de uma instituição de direitos humanos.

Ativistas e membros da igreja têm tentado obter provas de participação ou conivência do governo nas execuções extrajudiciais.

Segundo relatos das testemunhas e dos parentes, as equipes policiais chegam em grupos de 10 até 30 homens, alguns em roupas civis e máscaras. Invadem as casas sem aviso e atiram na vítima. Não mostram mandados judiciais.

Em geral, são membros da Unidade Antidrogas Ilícitas, Força-Tarefa de Operações Especiais e Departamento de Inteligência.

Os suspeitos são mortos dentro de casa sem esboçar reação, segundo as famílias e os vizinhos, que são afastados pelos policiais e a área é isolada.

A polícia técnica chega de 15 minutos a três horas depois, e, quase sempre, encontra revólveres calibre 38 —arma que, segundo jornalistas, eram usadas pelos policiais antes que fossem substituídas por pistolas 9 mm.

Parentes que testemunharam no Senado passaram a relatar ameaças. A Comissão de Direitos Humanos da ONU investiga mais de 250 casos de abuso da polícia e mantém oito testemunhas em abrigos secretos.

Vincent Go/Folhapress
Filipinas - funeral and Burial of Erik Sisonx)
Amigos e parentes de Sison vestem camisetas contra assassinatos em seu funeral

"As declarações públicas do presidente filipino e seus braços-direitos —o diretor-geral da PNP, Ronald dela Rosa, e o equivalente ao advogado-geral, Jose Calida— garantiram `licença para matar'. Tanto policiais quanto civis armados atenderam ao chamado de Duterte de violência extrajudicial contra supostos criminosos", diz o diretor para a Ásia da Human Rights Watch, Phelim Kine.

A Human Rights Watch e outros organismos de direitos humanos têm defendido uma investigação imparcial das mortes, "para determinar por que tantos estão sendo vítimas da polícia e quem são esses 'atiradores não identificados'", diz Kine.

Duterte, por seu lado, atacou várias vezes, em público, as organizações de direitos humanos, acusando-as de fecharem os olhos para supostos abusos cometidos pelos Estados Unidos e serem seletivamente críticos com outros países.

"Não dou a mínima para o que o pessoal dos direitos humanos diz. Minha obrigação é defender nossas crianças", declarou em entrevista em setembro.

Kine diz que durante a campanha presidencial o então candidato o "convidou" a visitar Davao com seus colegas para serem "executados publicamente".

A Folha tentou entrevistar a PNP desde o começo de novembro, sem resposta.

O jornal também pediu uma entrevista com o presidente Duterte no começo de outubro, um mês antes de embarcar para Manila. A resposta, negativa, veio no penúltimo dia de estadia nas Filipinas.

Desde que tomou posse, o presidente deu várias declarações públicas sobre a guerra às drogas, mas recusou entrevistas exclusivas (com exceção da que concedeu à TV Al Jazeera em 15 de outubro).

Em dezembro, o escritório de comunicação da Presidência respondeu, por escrito, a cinco perguntas feitas pela agência de notícias Reuters.

O governo negou relação com os esquadrões da morte, afirmou que o problema das drogas é ainda maior que o previsto, porque envolve políticos que se financiam com dinheiro do narcotráfico, e afirmou "mal arranhou a superfície" em sua guerra antinarcóticos.

Erik De Castro - 29.ago.2016/Reuters
A sign reading
Cartaz na entrada da favela em que morava Erik Sison pede justiça