Os ribeirinhos e índios do rio Tapajós nunca haviam topado com nada tão grande. De uma ponta a outra, a megadraga para extrair diamante e ouro do fundo do rio ostenta uma estrutura metálica de cerca de 120 metros, extensão ao menos duas vezes maior do que as demais embarcações do tipo operando na região.
Batizado de Santa Clara 1, o monstrengo pertence ao empresário israelense Leo Steiner e foi construído sob medida para operar no trecho mais profundo do rio, localizado diante da Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, da etnia mundurucu.
Os índios, porém, foram ignorados durante o processo de licenciamento, expedido pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas).
"Essa balsa aí, a gente já conversou com eles, dizem que a gente não pode impedir o trabalho deles porque têm o PLG [Permissão de Lavra Garimpeira]", afirma o cacique Juarez Saw Munduruku, 58. "Pra nós, ela vem adoecendo o rio."
Pela instrução normativa nº2 da Funai, o órgão indigenista deveria ser consultado sempre quando um empreendimento ameaça afetar comunidades indígenas, mesmo se em áreas não delimitadas.
Apesar disso, a Semas aprovou a licença sob a alegação de que a TI só teve seus estudos de identificação e delimitação publicados no Diário Oficial da União em 2016, um ano após a concessão da licença a Steiner.
O processo formal de demarcação da Sawré Muybu teve início em 2007, mas não avança há dois anos.
Não se trata de um caso isolado: há 245 terras indígenas em todas as regiões do país sem regularização, uma tramitação cada vez mais morosa devido a contestações administrativas e judiciais e à oposição do agronegócio.
Uma das contestações à demarcação veio da empresa Rio Vermelho Importação e Exportação, de Steiner, que mora em Israel, segundo sua advogada, Roberta d"Almeida. A reportagem da Folha enviou uma solicitação de entrevista por email, mas não houve resposta.
Além da Rio Vermelho, se opõem à terra indígena duas associações de mineração de ouro, os Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia e até a CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Há também o Consórcio Tapajós, formado por empresas interessadas na construção da hidrelétrica São Luiz, que, em 2016, teve o licenciamento suspenso pelo Ibama, baseado em pareceres da Funai.
O principal argumento contestatório é a tese do "marco temporal", supostamente baseado no STF, pelo qual somente indígenas que ocupavam suas terras ou as disputavam judicialmente em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, poderão ter acesso a elas.
Caso seja construída, essa usina inundará 7% do território da Sawré Muybu, de 178 mil hectares de floresta e 122 habitantes, entre outros impactos socioambientais. Por outro lado, seria a quarta maior em potência instalada do país, com capacidade para abastecer uma cidade de 8,5 milhões de pessoas.
Recentemente, a Funai oficiou a Semas e o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) solicitando o cancelamento das lavras e a suspensão de novas licenças ambientais. O órgão indigenista também pediu ao Ministério Público Estadual uma apuração dos procedimentos da Semas e do DNPM no Tapajós. Em todos as requisições, ainda não houve resposta.
Enquanto o imbróglio continua, as dragas continuam operando. Em viagem de barco pelo Tapajós, a reportagem constatou, em vários trechos, ilhas e praias formadas pelo "arroto" -mistura de pedra e areia sugada pelas dragas do fundo do leito do rio por meio do "abacaxi", broca que perfura pedras atrás do ouro.
Um draga operava a poucos metros de uma aldeia mundurucu, substituindo o barulho da mata pelo ronco do motor 24 horas por dia.
"A praia fica seca, dura, misturada com a pedra. Aí, fica difícil até para o tracajá [tartaruga] desovar. Você não vê nenhuma praia natural mesmo. Não tem mais, não", disse o cacique Juarez, em entrevista em sua aldeia, à beira do Tapajós.
Apesar do estrago, a maioria das dragas tem licença de operação. Neste ano, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) fiscalizou 11 embarcações no Tapajós. Apenas 2 estavam irregulares.
A Folha enviou, em 3 de setembro, questionamentos por escrito à Semas sobre a licença concedida à empresa de capital israelense e sobre a poluição da água na região, mas não obteve resposta.
"A diferença entre estar em vias de demarcação e uma terra já demarcada é a segurança jurídica", Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
"Quando o processo está em tramitação, não há vedação legal pra que as pessoas não desmatem, não façam nada nesse território", exemplifica Tuxá, que é advogado. "Além disso, a morosidade causa dano psicológico, na saúde da comunidade que está no pleito."
Para ele, o caso do licenciamento da megadraga sem a consulta aos povos indígenas é uma ilegalidade comum no país. "Quando não está demarcado, o governo usa isso como subterfúgio para não fazer o seu devido trabalho, que seria a consulta."
Atualmente, na avaliação da Apib, as áreas em processo de demarcação mais tensas do país estão em Mato Grosso do Sul e nos litorais do Nordeste, do Sudeste e do Sul.
Integrante da FPA (Frente Parlamentar da Agricultura), principal força opositora à demarcação de terras, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS) afirma que "a questão toda está no laudo antropológico".
"O processo tem vício de origem, é ideologizado", diz. "Não tenho nada contra demarcação de terras, pelo contrário. É possível demarcar terra indígena, quilombola, desde que o processo seja lícito."
O resultado da influência ruralista é que o presidente Michel Temer (MDB) foi o que menos demarcou TIs desde a redemocratização: apenas uma foi homologada em pouco mais de dois anos.
Em outro aceno do Planalto à bancada que ajudou a salvá-lo do impeachment, a AGU (Advocacia Geral da União) adotou a tese do marco temporal como novo argumento jurídico.
Os moradores da região contam que a megadraga foi um fiasco. Apesar de ter uma lança de cerca de 100 metros, ela não teria sido suficiente para encontrar diamante e ouro nas profundezas do Tapajós.
Atualmente, a embarcação está encostada na margem do rio, diante de uma placa de "autodemarcação", pregada em uma árvore pelos mundurucus. Cópia da placa oficial da Funai, tem como objetivo inibir invasores e forçar o governo a acelerar o processo.
Para o cacique Juarez, o fracasso é um castigo por terem violado um trecho do Tapajós que faz parte do mito fundador da etnia mundurucu, conhecido como a Passagem dos Porcos.
"Eles nunca conseguiram chegar à terra com aquela lança. Eles medem quantos metros e emendam o cano, mas, quando arreiam, não alcança. Por quê? Porque ali é um lugar sagrado, as três pessoas em vigilância dali dentro do fundo não quer que mexam."
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Colaborou Monica Prestes, de Manaus
A viagem dos repórteres foi custeada pela Rainforest Foundation Norway (RFN)