Ilha no rio Tapajós próxima da comunidade Montanha e Mangabal

Ilha no rio Tapajós próxima da comunidade Montanha e Mangabal Lalo de Almeida/Folhapress

Projeto Amazônia

Reportagem da Folha radiografa os planos em curso e seus obstáculos para lidar com os principais problemas da Amazônia: acesso, desenvolvimento, exploração, preservação e direito à terra

Capítulo 7
Hidrelétricas

Prestes a ser concluída, Belo Monte é criticada por atingidos e especialistas

Mudança na vazão dos rios para abastecer usina muda fauna e hábitos da população local

Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida
Altamira (PA)

Moradora da aldeia Muratu, Maria das Graças Ribeiro, 54, sempre gostou de criar animais. Nos últimos anos, essa paixão encontrou uma missão: cuidar das cerca de 200 tartarugas recolhidas por ela e outros indígenas ao longo da Volta Grande do Rio Xingu, trecho de 100 km cuja vazão foi reduzida por causa da usina de Belo Monte.

"A água aqui baixou, não chega ao mato. Não tem o que elas comerem", diz Ribeiro, que se mudou para a Terra Indígena Paquiçamba após se casar com um juruna. "Já peguei tracajá [espécie de tartagura] vivinha, mas ela estava podre, a carne solta ao redor dela."

Vegetação morta que cobria ilhas do rio Xingu, próximos a Altamira, que foram inundadas pelo reservatório da hidrelétrica de Belo Monte

Vegetação morta que cobria ilhas do rio Xingu, próximos a Altamira, que foram inundadas pelo reservatório da hidrelétrica de Belo Monte Lalo de Almeida/Folhapress

As mudanças no rio começaram no final de 2015, quando a usina de Belo Monte cingiu o rio Xingu em dois. Na Volta Grande, onde moram jurunas e araras, a água escasseia. Dezenas de quilômetros rio acima, o reservatório cobriu casas e roças de ribeirinhos. Em ambas comunidades, a adaptação à realidade tem futuro incerto.

A mudança na vazão se deve à barragem de Pimental, que represou o Xingu pouco antes da Volta Grande, e do Canal de Derivação, de 20 km, que desvia parte da água do rio até a casa de força principal.

No caso da Volta Grande –chamada de "trecho de vazão reduzida" pela empresa Norte Energia–, o volume de água deve diminuir ainda mais no ano que vem, quando as últimas nove turbinas, de um total de 25, serão inauguradas.

Um dos impactos mais temidos é a extinção, na natureza, de peixes endêmicos à Volta Grande, que se diferencia do restante do Xingu pelo complexo de pedrais e corredeiras.

Entre eles está o acari-zebra, a espécie de peixe mais ameaçada da Amazônia. Além do habitat cada vez menor, o tráfico de animais colabora para o quase desaparecimento desse pequeno bagre -a venda de peixes ornamentais é uma fonte de renda dos jurunas.

Em carta recente à Folha, o superintendente socioambiental e de assuntos indígenas da Norte Energia, José Hilário Portes, admitiu que os estudos sobre as mudanças na Volta do Rio Grande "são inconclusivos", mas atribuiu a diminuição do acari-zebra ao tráfico.

Questionada sobre a declaração, a Norte Energia afirmou, via assessoria de imprensa, que as condições ecológicas da Volta Grande estão asseguradas por meio do "hidrograma de consenso".

Trata-se de um esquema hidrológico por meio do qual foram estabelecidas as quantidades mínimas de vazão para que a região mantenha o equilíbrio socioambiental, incluindo a preservação da fauna e garantia do modo de vida tradicional da população.

A obra de Belo Monte consumiu R$ 30 bilhões. A Norte Energia ressalta que o hidrograma foi aprovado pela Agência Nacional de Águas e pelo Ibama, mas os jurunas dizem que não foram consultados e que a vazão menor ameaça a permanência na Volta Grande.

"A vida mudou, mudou tudo. E, eu vejo que nada compensa, nem carro nem caminhonete nem micro-ônibus nem casa nem estrutura de escola de qualidade", diz a líder Bel Juruna, 31, sobre as benfeitorias pagas pela Norte Energia.

"Nada compensa o que a gente tinha antes, que era a certeza de que o local oferecia condições de vida. Hoje, a gente tem tudo isso, mas não tem o mais importante, a segurança de permanecer aqui."

Parte das cerca de 200 tartarugas que são criadas por Maria das Graças Ribeiro, moradora da aldeia Muratu
Parte das cerca de 200 tartarugas que são criadas por Maria das Graças Ribeiro, moradora da aldeia Muratu - Lalo de Almeida/Folhapress

Para cuidar melhor das tartarugas, hoje amontoadas em caixas d"água e outros recipientes, dona Graça, como é conhecida, está aos poucos construindo um tanque de cimento, usando o dinheiro que ganha vendendo artesanato, roupa e bijuteria.

Devolvê-las ao rio seria pena de morte, diz. "Não tem mais como elas viverem no rio. Tem lugar que parece que tocaram fogo, mas é a sequidão."

A Norte Energia afirma que o monitoramento não detectou, até o momento, alteração na dieta das tracajás.

Maria das Graças Ribeiro, 54, na cozinha de sua casa na aldeia Muratu

Maria das Graças Ribeiro, 54, na cozinha de sua casa na aldeia Muratu Lalo de Almeida/Folhapress

Para chegar ao barraco de Milton de Castro, 26, é preciso ser um exímio piloto para navegar entre o "paliteiro", como são chamados os trechos de floresta mortos pelas águas do reservatório. O perigo vem de cima também: a chuva e o vento costumam derrubar grandes galhos secos.

São cerca de dois anos improvisados ali. À espera do reassentamento, a família de Castro mora numa área emprestada pelo cunhado, que já conseguiu seu lote dentro da APP (Àrea de Preservação Permanente), às margens dos 359 km2 do reservatório principal.

Para sustentar seis crianças, a família conta com o salário de merendeira da mulher, Dianne, e de uma pequena roça ao redor da casa, além de uma mensalidade de R$ 900 paga pela Norte Energia.

Uma das principais lideranças, o pescador Leonardo Batista, o Aranor, 59, foi um dos deslocados. Como parte da sua indenização, a Norte Energia disponibilizou uma casa em Altamira, hoje uma das cidades mais violentas do país.

O ribeirinho Leonardo Batista , 59, visita o que restou de em uma ilha do rio Xingu que foi inundada
O ribeirinho Leonardo Batista , 59, visita o que restou de em uma ilha do rio Xingu que foi inundada - Lalo de Almeida/Folhapress

Não respeitaram o direito de ninguém", diz Aranor, ainda sem o seu lote. "Eles queriam que nós nos cansássemos, mas continuamos lutando".

A Norte Energia não respondeu à pergunta enviada por e-mail sobre o reassentamento na APP, mas afirmou que "as iniciativas cumprem o previsto no Projeto Básico Ambiental".

"Apesar das 24 ações já propostas, entendo que ainda não conseguimos mensurar o passivo deixado por Belo Monte, em especial por não terem sido realizadas ações indispensáveis à viabilidade do empreendimento, como a proteção das terras indígenas", afirma Thais Santi, procuradora da República em Altamira.

"O custo socioambiental do empreendimento foi transferido aos atingidos. Precisamos conhecer o preço da destruição para saber quanto realmente custa a energia produzida em Belo Monte."

Reassentamento construído na periferia de Altamira para abrigar abrigar os moradores que foram removidos para a construção de Belo Monte
Reassentamento construído na periferia de Altamira para abrigar abrigar os moradores que foram removidos para a construção de Belo Monte - Lalo de Almeida/Folhapress

Segundo o Sistema de Informações do Potencial Elétrico Brasileiro (Sipot), há 119 hidrelétricas em planejamento, 23 em operação e 2 em construção na Amazônia Legal.

Para Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura, construir grandes hidrelétricas na Amazônia perdeu o sentido, pois a transformação tecnológica no setor energético permite escolher fontes de menor impacto.

Outro porém é a exigência de construir a usinas a fio d"água (com reservatório pequeno), o que deixa a produção vulnerável aos ciclos de cheia e seca. Construir Belo Monte a fio d"água foi um erro, diz.

"Traria mais benefícios se tivesse sido permitido construir com [grande] reservatório."

Casa de força principal da usina de Belo Monte
Casa de força principal da usina de Belo Monte - Lalo de Almeida/Folhapress

Projeto de Belo Monte vai demorar mais de 40 anos para ficar pronto

1975-88 Eletronorte inicia estudos da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu para construir do Complexo Hidrelétrico de Altamira, com as usinas de Babaquara e Cararaô (origem de Belo Monte)

1989 Índia Tuíra ameaça à faca presidente da Eletronorte no Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira; Banco Mundial suspende financiamento

1994-2003 Plano de Belo Monte é reescrito para agradar ambientalistas e investidores; em 2001, apagão dá urgência a projetos energéticos, mas Justiça bloqueia estudo ambiental

2006 Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, anuncia o investimento de R$ 235 bilhões em energia para 2007-2015 e inclui no projeto a operação de Belo Monte

2009 Ibama aprova estudo de impacto ambiental, mas ele é suspenso dias depois

2010 Ibama libera obra com 40 exigências ao custo de R$ 1,5 bilhão; na véspera do leilão, em abril, índios ocupam local da futura usina; consórcio Norte Energia vence licitação com deságio de 6%

2011 Obras começam em junho, e Comissão de Direitos Humanos da OEA pede suspensão dos trabalhos; Brasil ameaça deixar o órgão

2012 Índios ocupam um dos canteiros de obras de Belo Monte; meses depois, operários promovem quebra-quebra em três canteiros

2013 Em outubro, Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, ordena interrupção das obras; decisão é suspensa dois dias depois

2016 Ibama concede licença de operação no final de 2015; reservatórios são enchidos em fevereiro e, em abril, começa a operação comercial

2017 Altamira, com 77 mil habitantes em 2000, chega a 111 mil; sua taxa de homicídios é a maior do Brasil (124,6/100 mil habitantes)

2019 Provável inauguração das últimas 9 de 24 turbinas do projeto, que farão de Belo Monte terceira maior usina do mundo, com 11.233 MW de potência instalada

Conheça a opinião dos candidatos à Presidência sobre os dilemas da Amazônia.

Colaborou Monica Prestes, de Manaus

A viagem dos repórteres foi custeada pela Rainforest Foundation Norway (RFN)