Inocentes presos

Série traça radiografia das prisões injustas no país e mostra quem são suas vítimas

Capítulo 3
Falha de identificação

Sem banco de dados unificado, Brasil ainda prende inocentes por erro em identificação

Problemas na confirmação de identidade causaram uma a cada quatro prisões injustas, segundo levantamento da Folha

Artur Rodrigues Rogério Pagnan
São Paulo

Aldeci foi preso no lugar de Valdecírio, Eldis no lugar de Eudes e Carlos foi detido duas vezes, no lugar de um desconhecido que usou seu CPF.

Levantamento inédito realizado pela Folha com cem casos mostra que uma a cada quatro prisões injustas se deve a erros na identificação. São pessoas encarceradas por crimes de homônimos e gente que teve documentos usados por criminosos e acabou na prisão, entre outros casos.

O país tem uma espécie de apagão em seus registros, com bancos de dados estaduais de identificação sem interligação, alguns deles ainda na era analógica. A fragilidade é amplamente aproveitada por criminosos e, ao mesmo tempo, causa diversas prisões de inocentes.

O ajudante geral Aldeci Madeiro de Araújo, 40, é uma das vítimas desse sistema. Ele passou quase três anos nos sistemas prisionais de São Paulo e da Bahia antes que a Justiça se desse conta de que havia prendido a pessoa errada.

A história de Aldeci começou em outubro de 2012, quando ele não conseguiu tirar um atestado de antecedentes criminais para um novo emprego. Na ocasião, ele descobriu que um irmão, chamado Valdecírio, havia se passado por ele dez anos antes ao ser preso sob acusação de um latrocínio, na Bahia.

O homem fugiu da prisão. Em vez de Valdecírio, o procurado passou a ser Aldeci.

Aldeci Madeiro foi preso no lugar do irmão após se apresentar na delegacia para resolver problema com atestado de antecedentes criminais

Aldeci Madeiro foi preso no lugar do irmão após se apresentar na delegacia para resolver problema com atestado de antecedentes criminais Karime Xavier/Folhapress

Aldeci Madeiro em sua casa, em Mogi das Cruzes; no detalhe, o alvará de soltura com o qual passou a andar após a prisão

Aldeci Madeiro em sua casa, em Mogi das Cruzes; no detalhe, o alvará de soltura com o qual passou a andar após a prisão Karime Xavier/Folhapress

Apesar do status de procurado, ninguém procurava de verdade por Aldeci. Ele só foi preso porque resolveu ir até uma delegacia em Mogi das Cruzes (Grande SP), perto de onde morava, para esclarecer a situação.

Ele achava que seria um problema de rápida resolução, tanto que levou a mulher e os quatro filhos à delegacia. "Na minha cabeça, não precisava de advogado se tinha como provar que eu não estava na Bahia naquele ano", diz Aldeci.

Na delegacia, ele descobriu que estava enganado. Uma policial demonstrou acreditar na história, mas teria dito que "infelizmente, o sistema é falho", segundo seu relato.

Ele foi enviado inicialmente para uma cadeia pública em Mogi, onde passou um ano e meio. Em uma cela superlotada, preso por um crime que não cometeu, ele diz que começou a ouvir vozes. "Teve uma voz que falou: 'O negócio é você tocar fogo nesses colchão aí e pular em cima dele'."

Sem saber a quem recorrer, o ajudante geral seguiu a instrução. Depois do episódio, foi transferido pela primeira vez, dessa vez para uma penitenciária em Potim (a 162 km de SP).

A mulher e os quatro filhos venderam tudo para se mudar para a cidade, uma rotina que se repetiria nas outras transferências pelo estado.

O apelo que ele fazia era para ser mandado de uma vez para a Bahia, onde, enfim, conseguiria explicar a situação.

O rapaz relata que chegou a mandar cerca de 50 cartas contando a sua história. Os destinatários eram de juízes a autoridades como a então presidente Dilma Rousseff (PT) e o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) à época, Ricardo Lewandowski.

Quando finalmente foi transferido para uma prisão em Salvador (BA), um desembargador olhou mais atentamente para o seu caso. O magistrado, então, pediu um laudo comparando a rubrica da pessoa presa em 2002 com a caligrafia de Aldeci. O procedimento simples provou que ambos não eram a mesma pessoa.

Aldeci, finalmente, foi libertado. Mas nunca se recuperou dos anos atrás das grades e convive com um quadro de depressão. Segundo ele, seu irmão acabou preso anos depois.

"Precisou eu ir lá, me apresentar, acontecer tudo o que aconteceu, para, depois de 2 anos e 10 meses, poder investigar tudo direitinho, investigar assinatura, comparação de foto para poder me soltar. Não podia ter feito isso no começo?"

O caso lembra um enredo de novela, com um irmão causando a prisão de outro, mas a situação é mais comum do que se imagina. Dos 25 casos de erro de identificação localizados pela Folha, ao menos sete envolviam parentes, cinco dos quais eram pessoas presas no lugar de irmãos.

Em um dos casos, Eldis Trajano da Silva, preso em 2017, passou mais de dois anos preso no lugar do irmão, Eudes Trajano da Silva, no Rio Grande do Norte, acusado de crimes como furto e roubo. A troca só foi descoberta porque Eldis se recusou a tomar coquetel contra Aids na prisão –foi realizado um exame e descobriu-se que ele não era soropositivo, como o irmão.

Eldis Trajano da Silva, que ficou mais de dois anos preso no lugar do irmão
Eldis Trajano da Silva, que ficou mais de dois anos preso no lugar do irmão - Alex Régis - 16.dez.19/Folhapress

A reportagem também mapeou outros casos de criminosos que acharam documentos perdidos e passaram a usá-los. Muitos saem para o regime semi-aberto, não voltam e a polícia permanece à procura de um inocente.

Esse tipo de erro acontece graças a uma brecha da legislação que prevê que, quando um alguém apresenta uma identidade válida, ela não precisa ser legitimada, processo que envolve a coleta de impressões digitais dos presos. Assim, um criminoso pode apresentar uma identidade falsa ou de outra pessoa, ser condenado por vários crimes e depois sumir sem que a polícia saiba qual é sua verdadeira identidade.

A situação fica mais difícil quando se trata de pessoa de estado diferente de onde ocorre a prisão, uma vez que não há interligação entre todos os sistemas estaduais de identificação. Iniciativas para um sistema nacionalizado nunca saíram do papel, em parte por falta de vontade política.

Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que o país tem 27 polícias civis e 27 polícias militares, que atuam sem interligação ou coordenação federal. Para ela, a extrema fragmentação entre órgãos de segurança pública e de informação não só leva à prisão de inocentes como também facilita a vida dos criminosos, que podem tirar RGs em diferentes estados.

"É um reforço para a impunidade, porque é muito fácil ser um fugitivo", diz Samira. "Isso ajuda muito os bandidos e pessoas fora da lei, desde quem não paga pensão até o criminoso contumaz, homicida, que tira um RG falso em outro estado. E esse inocente, que vai preso como homônimo, [é prejudicado], o que é um absurdo", completa.

Policiais ouvidos pela Folha disseram que um RG nacional, com foto e impressão digital, ajudaria a resolver o problema.

Em São Paulo, quando se trata da identificação de um suspeito registrado no estado, a situação é mais simples. O instituto de identificação paulista, o IIRGD, tem 45 milhões de prontuários com impressões digitais –32 milhões delas estão digitalizadas. Quando se quer confirmar a identificação de alguém, a digital é incluída em um sistema que traz 20 possibilidades para comparação, finalizada por um papiloscopista.

A situação fica mais complicada quando a pessoa não tem registro em São Paulo. O sistema de legitimação à distância do estado só tem convênio com cinco unidades da federação –Paraná, Sergipe, Espírito Santo, Goiás e Rondônia. Nesses casos, o procedimento é relativamente similar ao feito internamente.

Mas na maioria das vezes não é assim que funciona. "Nem todos estados têm esse sistema automatizado. Então, eles têm que buscar ainda na unha", diz o delegado Mitiaki Yamamoto, diretor do IIRGD.

Papiloscopista faz comparação de impressões digitais no instituto de identificação de SP
Papiloscopista faz comparação de impressões digitais no instituto de identificação de SP - Adriano Vizoni/Folhapress

Com falta de papiloscopistas e um sistema analógico, alguns estados podem demorar meses para confirmar uma identidade.

Diversos policiais ouvidos pela reportagem afirmam que boa parte das confusões de identidade seria eliminada com um trabalho mínimo de investigação.

O pedreiro João Batista Rodrigues da Silva, por exemplo, chegou a ficar 44 dias preso, em 2007, por um homicídio cometido por um homônimo em Goiás. Mas o crime havia ocorrido em 1981, quatro anos antes do nascimento do homem que havia sido preso. Rodrigo da Silva Costa foi preso em 2016, em Foz do Iguaçu (PR), no lugar de homônimo, natural de estado diferente, com idade diferente.

Em 2010, um homem chamado José Carlos Corrêa de Oliveira ficou sete anos preso no lugar de André Carlos da Silva porque, na hora da prisão, estava sem documentos para mostrar que não era o procurado.

Já o catador de papelão José Machado Sobral passou dois anos preso por uma tentativa de homicídio atribuída a outro José, este Manuel de Sobral, 14 anos mais novo. O autor do crime era branco, enquanto o catador era negro.

Carlos Roberto Jusviaki foi preso duas vezes após criminosos usarem seu CPF para registrar telefone celular

Carlos Roberto Jusviaki foi preso duas vezes após criminosos usarem seu CPF para registrar telefone celular Karime Xavier/Folhapress

Carlos Roberto Jusviaki trabalhando em sua oficina, em Curitiba

Carlos Roberto Jusviaki trabalhando em sua oficina, em Curitiba Karime Xavier/Folhapress

A Folha também localizou casos em que pessoas tiveram seus CPFs utilizados para criminosos para registrar telefones celulares usados em crimes.

Em 2018, o funileiro Carlos Roberto Jusviaki, 28, acordou às 5h com policiais civis invadindo sua casa, em Curitiba. Ele foi levado a uma cadeia de passagem onde passou 15 dias até descobrir o motivo da prisão: um celular usado em um esquema de venda de drogas pela internet havia sido registrado com seu CPF.

Com base na informação, a Polícia Civil do Distrito Federal conseguiu um mandado de prisão. Jusviaki só foi ouvido semanas depois de preso, em uma audiência de custódia, na qual relata ter ficado sabendo que o crime atribuído a ele era de envio de drogas pelos correios.

Até ser preso, o rapaz não foi ouvido nenhuma vez. "O que eles tinham [contra mim] era uma linha telefônica, não tinha nada mais", diz.

Jusviaski passou 29 dias em um cubículo com cerca de 20 pessoas onde cabiam 5. Um dia, chegou o alvará de soltura, sem nenhuma explicação adicional ou pedido de desculpas.

O rapaz voltou à sua vida quando, um ano depois, recebeu uma nova visita da polícia. Dessa vez, a Polícia Federal de São Paulo investigava o mesmo esquema de tráfico de drogas.

"Quando eles chegaram, até por causa da minha mãe, da minha irmã, falei: 'Vou ser preso de novo?' 'Vai. Então vamos de uma vez'", lembra.

O funileiro relata que, ao contar sobre a primeira prisão indevida, um dos policiais chegou a comentar sobre um possível erro. Mas isso não o livrou de passar mais sete dias preso –dessa vez em uma carceragem mais tranquila, ao lado de presos da operação Lava Jato que dividiam lanches com ele.

Os inquéritos foram arquivados, mas até hoje Jusviaki não se livrou do estigma das prisões. "Tem gente que até hoje duvida [da inocência]", diz. "[Por ter oficina] sempre tive carro bom. Teve gente que falou: ah, agora está explicado por que você anda de carro bom."

Todos os anos, quando chega perto do período em que foi preso, começa a ficar tenso. "Às vezes sonho que estou fugindo. Ou sendo preso de novo."

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