Jornalismo profissional é antídoto para notícia falsa e intolerância

Documento atualiza compromissos da Folha em uma era de mudança de hábitos dos leitores

Capítulo 3
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1997 - Caos da informação exige jornalismo mais seletivo, qualificado e didático

O texto publicado a seguir procura condensar uma série de discussões realizadas no âmbito interno da Folha desde o final do ano passado. O objetivo dessas discussões foi organizar a experiência recente e apontar perspectivas para o futuro do jornalismo brasileiro.

O documento ressalta as mudanças ocorridas ao longo da última década no plano internacional. Discute o impacto da revolução tecnológica e da expansão da economia de mercado sobre a imprensa. Registra o avanço de um jornalismo mais independente, ao mesmo tempo em que identifica suas deficiências e estratégias para superá-las.

Na parte propositiva, o texto apresenta diretrizes que visam a qualificar o conteúdo dos jornais, enfatizando uma abordagem mais compreensiva e criteriosa dos fatos.

Sua divulgação tem a finalidade de tornar público o compromisso do jornal com os valores e instrumentos por meio dos quais pretende melhorar a qualidade do serviço que vem prestando ao leitor e ao país.

Reprodução de páginas do projeto editorial publicado na Folha de S.Paulo em 1997
Reprodução de páginas do projeto editorial publicado na Folha de S.Paulo em 1997 - Eduardo Anizelli/Folhapress

1 - UM PANORAMA DE MUDANÇAS NA ECONOMIA, NA POLÍTICA E NAS IDÉIAS

Sendo um registro taquigráfico da História, o jornalismo sofre necessariamente o primeiro impacto dos fatos. Até por isso convém que ele seja reexaminado periodicamente, a fim de aferir se sua atividade está sendo capaz de projetar alguma luz para além da efervescência dos acontecimentos, se seus critérios estão sendo os melhores para franquear uma leitura ao mesmo tempo fidedigna, reveladora e útil, se não da realidade, ao menos da sua superfície diária.

Toda época acredita viver transformações importantes. Os últimos dez anos ostentam, porém, uma constelação de mudanças espetaculares na política, na economia, nas idéias. Na metáfora agora tão batida da Queda do Muro, entrou em colapso a concepção maniqueísta, de valores complementares e soluções opostas, que prevalecia desde pelo menos a passagem do século. É como se as cartas da ideologia estivessem sendo reembaralhadas e um novo jogo, ainda indefinido, começasse.

A dualidade política foi substituída por um consenso. Uma só superpotência impôs seu predomínio ao mundo, quase todas as sociedades procuram se aproximar de seu modelo. Com pouca variação de grau, há uma só receita econômica (o mercado), uma só fórmula institucional (a democracia), num mundo que tende inevitavelmente à "globalização". Pois não se trata de um sistema estanque, mas que se propõe a enquadrar toda diversidade étnica ou cultural num mesmo modelo, já batizado como "fim da História", desde que cumpridos os preceitos da livre competição e da técnica.

O modelo vitorioso se impôs pela eficiência com que produz bens e serviços, prenunciando uma era de progresso e multiplicação da riqueza. Seu monolitismo é perturbado, porém, por instabilidades e exclusão. Grupos sociais estão sendo alijados do dinamismo econômico, nações inteiras correm o risco de se verem confinadas ao subdesenvolvimento. Os próprios vínculos coletivos como "nação" ou "classe" entretanto se enfraquecem, quando expostos a um modelo que premia individualmente enquanto exclui socialmente. Surgem novas formas de associação, menos definidas por sua base socioeconômica do que por valores culturais e de consumo, por isso mesmo mais voláteis e cambiantes.

O espaço público, terreno em que o jornalismo sempre lastreou sua legitimidade, passa por um terremoto que ainda não assentou; até a terminologia do debate (direita e esquerda, por exemplo) foi desorganizada. Conceito sempre difuso, a opinião pública ganha unidade com a convergência geral de idéias, mas se dispersa numa segmentação de interesses que desafia a linguagem em comum. O jornalismo reflete fraturas e deslocamentos que ainda estão por mapear e se defronta com dilemas capazes de pôr seus pressupostos em questão: o que informar, para quem e para quê?

2 - INVESTIMENTOS, NOVAS TECNOLOGIAS E PRESSÕES DE MERCADO

Idêntico movimento –um mesmo paradoxo entre convergência e dispersão– acontece na base empresarial, tecnológica e de mercado das comunicações. Empresas locais se associam a investimentos estrangeiros, por sua vez aglutinados na forma de grandes blocos em seus países de origem. Todas as modalidades de comunicação foram convertidas a uma mesma linguagem tecnológica, o que permite a esses blocos integrar um amplo espectro de serviços, do jornalismo ao entretenimento, passando por televisão, telefonia, cinema, vídeo, editoração e Internet.

Tais grupos tendem a acumular poder e por isso sofrem restrições mesmo nos países onde a legislação econômica é considerada liberal. No entanto, sendo sua lógica a do mercado, voltada para o atendimento de demandas que remunerem, o risco parece ser menos o de manipulações conspiratórias contra o público do que o de uma atitude, crescente nos meios de comunicação em geral, que se limita a espelhar as expectativas de um consumidor estatisticamente médio.

As associações em nível empresarial colocam uma quantidade inédita de recursos a serviço das comunicações, ao mesmo tempo em que a integração tecnológica permite dar escala econômica a uma imensa gama de interesses específicos. A confluência entre esses dois fatores está propiciando uma explosão das possibilidades de acesso ao conhecimento. Fala-se em direito à não-informação, sintoma de um público que se ressente não já da falta, mas de um excesso inassimilável de dados, de uma verdadeira cacofonia da comunicação.

A proliferação da oferta acirra a disputa pelo tempo do consumidor. Como o leque de opções é amplo na televisão paga e praticamente inesgotável na Internet, a tendência é que as inclinações pessoais, especialidades e "hobbies" encontrem seus nichos, levando o usuário a dedicar parte crescente do tempo a eles. Além disso, o aperfeiçoamento tecnológico dos novos meios ainda está em curso, conforme eles convergem para um mesmo aparelho físico, capaz de enfeixar e redefinir o uso do televisor, do telefone, do livro, da revista e do jornal.

Aqui, é preciso estabelecer uma distinção entre o suporte físico do meio –o papel e a tinta– e seu conteúdo. A reiterada pergunta sobre se os jornais vão sobreviver possivelmente comporta as duas respostas -sim e não. Há uma grande massa de informações, para não mencionar o trabalho analítico em torno delas, que o consumidor não precisa receber em ritmo mais frequente do que o diário. Embora exista quem julgue insubstituíveis as vantagens do formato papel, é provável que ele venha a decair ao longo das próximas décadas, sem que os jornais desapareçam no que é a sua essência: um panorama dos principais acontecimentos da véspera tal como filtrado por uma personalidade editorial coletiva. Seria o caso de perguntar se a Internet vai substituir a rotativa, não o jornal.

Tudo indica que nos países desenvolvidos os jornais atingiram há algum tempo o ponto de saturação das tiragens, que se estabilizaram, quando não tendem a decrescer gradualmente. A situação é outra em países emergentes como o Brasil, onde um largo contingente da população, à medida que seus padrões de educação e consumo melhorem, poderá ser incorporado ao público leitor. Os índices de circulação alcançados pela imprensa brasileira sugerem que isso já está ocorrendo. Segundo estimativas da Associação Nacional de Jornais, a circulação de periódicos em todo o país cresceu 21% entre 1991 e 1996. Se tomarmos como ponto de partida a redemocratização em 1985, a circulação dos quatro jornais de influência nacional aumentou 67% (no caso da Folha, 116%); a das duas principais revistas, 135%. Pode-se objetar que parte desse crescimento não decorreu do aumento de leitores, mas de consumidores atraídos por promoções ou descontos vinculados à compra do produto. A estratégia mercadológica que prevaleceu, no entanto, foi agregar produtos de valor cultural (atlas, enciclopédias, dicionários, vídeos etc.), congruentes com a natureza do produto jornalístico.

Contam-se aos milhões as residências que receberam, muitas pela primeira vez, esse acervo mínimo. Não existe razão pela qual as empresas jornalísticas devam abandonar o recurso, ao menos enquanto ele continuar sendo compensatório para ambas as partes, permitindo ainda que uma faixa de não-leitores venha a se converter em leitores de jornal.

3 - UM JORNALISMO CADA VEZ MAIS CRÍTICO E MAIS CRITICADO

A evolução do jornalismo brasileiro na década de 80 culminou com o impeachment do presidente da República em 1992, no qual a imprensa teve papel determinante. Os telejornais ganharam desenvoltura informativa, firmou-se nos meios impressos o prestígio de um profissionalismo independente, submetido apenas às forças de mercado. A democracia adquiriu consistência, conforme as instituições mostravam que podiam funcionar. Os meios de comunicação passaram a refletir pressões crescentes de democratização do poder público, expressas em timbre moralizador, tanto mais intensas quanto mais o Estado se mostrava incapaz de atender expectativas mínimas da população, represadas havia muito.

Entrou em grande evidência um jornalismo baseado na investigação, nem sempre conscienciosa, de irregularidades na administração pública, divulgadas de forma categórica, às vezes bombástica. O impeachment ocupa entre nós posição análoga à do caso Watergate na evolução da imprensa norte-americana, seja no sentido de ter revitalizado a função político-institucional do jornalismo, seja no de revelar falhas que o próprio aumento da influência dos meios de comunicação tornou patentes.

Assim como cresceu a percepção crítica da imprensa em relação aos poderes instituídos, especialmente os de natureza pública, aumentou também a recepção crítica dos meios de comunicação por parte da sua base social, o público que consome a mercadoria-informação. O mal-estar que cerca a imprensa passou a se traduzir em três acusações predominantes: ela seria superficial, invasiva e pessimista.

Em vez de se voltar para o esclarecimento de processos complexos e contraditórios a imprensa opta –de acordo com a primeira crítica– por pinçar seus fragmentos mais estridentes, praticando simplificações que só aparentemente refletem uma disposição crítica, na verdade conivente com as estruturas que finge ignorar. Para o segundo tipo de acusação, no afã de obter revelações chocantes a imprensa atropela quaisquer limites, sobrepondo um suposto interesse público, cuja extensão ela mesma estabelece, aos direitos individuais de privacidade e reputação. Tangida pela competição à busca do "furo pelo furo", permeada por uma atmosfera de descrença reinante nas redações, a imprensa adota uma linha destrutiva –daí o seu alegado pessimismo.

Não se trata de acusações descabidas, ainda que generalizem exceções, tomando-as por regra. Subordinado a um regime de pressa que faz parte de sua utilidade pública, o jornalismo está sujeito a erros e distorções, raramente premeditados. É argumentável que alguma incidência deles seja o preço a pagar para que a sociedade possa usufruir de um valioso patrimônio público, a livre circulação de informações e idéias. Mesmo assim, está claro que uma resposta para os problemas do jornalismo contemporâneo terá de corresponder à sensibilidade de parcelas crescentes do público, que reclamam um emprego mais criterioso do poder de informar.

Os objetivos a compatibilizar nem sempre parecem congruentes. Como praticar um jornalismo mais interessante (pois há queixas também nessa direção) e ao mesmo tempo mais ponderado? Como manter e até ampliar o diapasão de crítica, sem ferir direitos nem utilizar métodos capciosos? Como aprofundar os enfoques sem perder a necessária vivacidade jornalística? Como evitar tanto o conformismo como a crítica pela crítica? Mais especificamente, essas questões deverão assumir forma prática com a nova legislação de imprensa, que provavelmente tornará mais ágeis e frequentes as punições nos casos em que prevalecer, em juízo, o entendimento de que houve negligência ou abuso.

4 - SELEÇÃO DE FATOS E COMPREENSÃO DE SEUS NEXOS NUM TEXTO MAIS LIVRE

Foram relacionados, até aqui, alguns dos desafios que assediam o jornalismo de modo simultâneo e sob diversos prismas: político, empresarial, tecnológico, mercadológico, jurídico. Não existe, evidentemente, uma fórmula capaz de responder de antemão a todos eles. Somente a experiência dos próximos anos permitirá defini-la, conforme os prognósticos que hoje é possível esboçar forem corroborados ou tiverem de sofrer retificações.

Determinadas linhas de ação, no entanto, parecem claras como diretrizes a ser adotadas pelo jornalismo diário. O atendimento cada vez mais copioso e eficaz de demandas específicas não faz desaparecer –ao contrário, ressalta– a necessidade de meios que possam funcionar como âncoras de referência geral. Em meio à balbúrdia informativa, a utilidade dos jornais crescerá se eles conseguirem não apenas organizar a informação inespecífica, aquela que potencialmente interessa a toda pessoa alfabetizada, como também torná-la mais compreensível em seus nexos e articulações, exatamente para garantir seu trânsito em meio à heterogeneidade de um público fragmentário e dispersivo.

Em outras palavras, o jornalismo terá de fazer frente a uma exigência qualitativa muito superior à do passado, refinando sua capacidade de selecionar, didatizar e analisar. É recomendável que a gama de assuntos a ser cobertos até mesmo se reduza em alguma medida, desde que em contrapartida sua seleção seja mais pertinente, e o tratamento que receberem, mais compreensivo. Uma tal mudança implica repercussões na pauta, na reportagem, no texto, na edição. É preciso maior originalidade na identificação dos temas a ser objeto de apuração, bem como uma focalização mais precisa de sua abordagem. Pesquisas de opinião possibilitam conhecer um pouco melhor as necessidades do público e aproximar a pauta do jornal e a vivência concreta do leitor. Mas não substituem o discernimento necessário para detectar a ocasião jornalística nos fatos que reúnam o geral e o específico, em que um processo relevante ou emergente apareça entrelaçado com sua manifestação mais sintomática e humana. Essa preocupação deveria nortear a elaboração do jornal, da pauta à edição.

A transição de um texto estritamente informativo, tolhido por normas pouco flexíveis, para um outro padrão textual que admita um componente de análise e certa liberdade estilística é consequência da evolução que estamos procurando identificar. Trata-se, porém, de política a ser administrada com parcimônia e cautela, seja para que não se perca a base objetiva de informação, seja para que o leitor não fique à mercê dos caprichos da subjetividade de quem está ali para, antes de mais nada, informar com exatidão. A um texto noticioso mais flexível deve corresponder um domínio superior do idioma, bem como redobrada vigilância quanto à verificação prévia das informações, à precisão e inteireza dos relatos, à sustentação técnica das análises e à isenção necessária para assegurar o acesso do leitor aos diferentes pontos de vista suscitados pelos fatos.

Sobrecarregada, até certo ponto, por tarefas que a tecnologia colocou sob sua alçada, a edição enfrenta também o desafio de mobilizar as possibilidades de pesquisa propiciadas pela informática, utilizar melhor a computação gráfica, desenvolver a utilização elegante de imagens coloridas. Será cada vez mais importante que esses esforços parciais sejam integrados de modo criativo e didático, a fim de assegurar uma apresentação mais aguda de tudo o que se decidiu considerar importante no dia.

5 - TREINAMENTO, RECICLAGEM E COMBATE SISTEMÁTICO A ERRO

O êxito da transição para um modelo como o delineado acima depende de vários fatores. Depende da capacidade das empresas para preservar e ampliar a distinção entre seus interesses econômicos e sua autonomia editorial, compreendendo que esta convém àqueles. Depende de uma articulação eficaz entre diversos setores: redação, publicidade, circulação, planejamento, impressão, informática, recursos humanos, marketing. Depende de seus níveis de investimento em tecnologia e pessoal qualificado. Mas esses fatores precisam ser complementados por um esforço profundo de aprimoramento intelectual e técnico no âmbito das redações. São as próprias exigências competitivas do mercado que se refletem sobre a formação do profissional de imprensa, compelindo-o a uma reciclagem permanente por meio de cursos, estágios, viagens e períodos sabáticos. Para tratar um determinado assunto de maneira ao mesmo tempo mais abrangente e explicativa, é indispensável conhecê-lo melhor. Também os mecanismos de recrutamento devem evoluir, com vistas à elevação do nível médio dos quadros profissionais.

A abertura para temas até agora pouco frequentados pela pauta jornalística; a "desestatização" do noticiário, num jornalismo ainda fortemente atrelado a agendas, fontes e declarações oficiais; uma disposição para conferir maior evidência aos assuntos de alcance nacional e internacional; a interpretação dos mananciais estatísticos, em que nem sempre é fácil separar o relevante do incidental; a demonstração dos vínculos entre a aparência e o substrato de cada fato importante -tudo isso reclama uma qualificação profissional em constante evolução. É preciso incrementar o jogo de estímulos recíprocos entre melhores condições de remuneração e trabalho, por um lado, e uma cultura jornalística que incentive o aprendizado, a autocrítica e a imaginação, por outro. A densidade dessa cultura interna será elemento decisivo, tanto para garantir a sobrevivência dos jornais em conjunto, como para assegurar posições de liderança no público leitor.

Os programas de qualidade se converteram em imperativo de gerência empresarial. Embora a qualidade jornalística seja em parte insuscetível de se medir em termos objetivos, ela tem pelo menos uma dimensão –os erros– apta a ser quantificada e submetida a programas desse tipo. A adaptação de programas de qualidade à esfera das redações tem mostrado que é possível reduzir a incidência dos erros de forma (linguagem e digitação), ao mesmo tempo em que abre caminho para um combate pela primeira vez metódico aos erros mais importantes, os de conteúdo, cujo mapeamento, prevenção e retificação ainda são, quando muito, incipientes.

6 - CRÍTICA, PLURALIDADE E APARTIDARISMO NUM ESPAÇO EM REFORMULAÇÃO

Em documentos anteriores a este, a Folha cristalizou uma concepção de jornalismo definido como crítico, pluralista e apartidário. Tais valores adquiriram a característica doutrinária que está impregnada na personalidade do jornal e que ajudou a moldar o estilo da imprensa brasileira na última década. Cabe questionar, porém, à luz das transformações sumariadas acima, se a implementação desses valores não deveria passar por revisão também, até com a finalidade de sacudir os automatismos fixados pelo hábito

Se a premissa dessas notas está correta –ou seja, se o jornalismo atravessa um período de qualificação, que ultrapassa a ênfase normativa do período anterior–, a decorrência é que aqueles valores devem ser tomados, também eles, de modo mais qualificado. Isso não significa que o jornalismo deva aplacar a sua disposição crítica, mas refiná-la e torná-la mais aguda num ambiente que não é mais dicotômico, no qual o debate técnico substituiu, em boa medida, o debate ideológico.

O pluralismo, apequenado muitas vezes na auscultação meramente formal do "outro lado" da notícia, deveria renovar-se na busca de uma compreensão mais autêntica das várias facetas implicadas no episódio jornalístico. Mesmo a atitude apartidária, que veda alinhamentos automáticos e obriga a um tratamento distanciado em relação às correntes de interesse que atuam sobre os fatos, não pode servir de álibi para uma neutralidade acomodada, quando não satisfeita em hostilizar por hostilizar.

Os meios de comunicação têm assegurado grande visibilidade para a linha de reformas liberalizantes observada pelos últimos três governos. Ao fazê-lo, refletem uma tendência internacional que recebe apoio crescente na opinião pública interna. A discussão pormenorizada do conteúdo e da extensão dessas reformas, dos prós e contras de seus diferentes matizes, no entanto, é assistemática. Propostas alternativas têm sido objeto de pouca atenção. Da mesma forma, a demora no enfrentamento das carências sociais –problema básico num país como o Brasil– raramente vai além da repetição de enunciados genéricos. Existe um consenso, por exemplo, de que educação e saúde configuram o nó do desenvolvimento do país, mas a imprensa ainda não conseguiu articular enfoques que coloquem esses temas na ordem do dia, acoplando-os à agenda imediata de eventos.

A necessidade de adaptação nacional à dinâmica externa, imperativo aguçado na época que atravessamos, atualiza os problemas tradicionais de uma sociedade em que a divisão entre um setor integrado e um setor excluído nada tem de novo. Espelhar essa contradição e contribuir para que ela seja transposta, pela integração de seus termos na sociedade de mercado e na democracia política, é provavelmente a principal tarefa do jornalismo hoje, até porque de seu sucesso depende a amplitude e mesmo a sobrevivência de um espaço público em reformulação.

SAIBA O QUE DIZIAM OS TEXTOS ANTERIORES

Há 16 anos, em junho de 1981, o documento "A Folha e alguns passos que é preciso dar" surgia como a primeira sistematização de um projeto editorial que já estava, na prática, parcialmente esboçado, e que viria a se desenvolver vitoriosamente nos anos subsequentes.

O texto, divulgado internamente, fixava três metas: "Informação correta, interpretações competentes sobre essa informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos".

O documento também valorizava o investimento em reportagens, em detrimento da opinião, e preconizava a elevação da "qualidade técnica e informativa".

Em junho de 1984, quando o engajamento na campanha pelas diretas destacava a Folha do conjunto da imprensa, surgia o documento "A Folha depois da campanha diretas-já". Novamente restrito à circulação interna, o texto constatava que a campanha já era parte da história do país e da própria Folha.

O modelo jornalístico proposto naquele momento crucial foi consolidado em quatro tópicos: "Trata-se de um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno".

A projeção obtida com a campanha não serviu, entretanto, para encobrir falhas. Continuava-se enfatizando a necessidade de "informar mais e melhor". Ao mesmo tempo, constatava-se a existência de espaço para o crescimento do jornal : "A Folha é o meio de comunicação menos conservador de toda a grande imprensa brasileira. É o que mais tem-se desenvolvido nestes anos. É o mais sensível aos movimentos da opinião pública e é também o mais ágil."

A meta final não poderia ser outra: "Fazer da Folha o principal jornal do país."

Em julho de 1985, aparecia nas páginas da seção "Primeira Leitura", da Ilustrada, o "Projeto Editorial da Folha 1985-1986". Tratava-se de adequar as estratégias do jornal a uma nova fase, marcada pela implantação do regime democrático e por um espaço público menos dicotômico, com "matizes mais sofisticados e possibilidades múltiplas".

O texto recolocava os princípios gerais do jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno, mas agregava às preocupações da Redação outros desafios, notadamente o jornalismo de serviço e a adoção de novas técnicas visuais.

Em setembro de 1986, o "Projeto Editorial da Folha 1986-1987", também estampado na seção "Primeira Leitura", constatava que a Folha alcançara a maior circulação entre os diários brasileiros. Informação exclusiva e excelência do produto eram as preocupações principais desse documento.

O último texto que estabeleceu diretrizes editoriais foi o "Projeto Editorial da Folha 1988-1989", de agosto de 1988, também publicado pela seção "Primeira Leitura".

Estão ali registrados os traços de uma nova etapa, marcada pelo acirramento da concorrência e pela transformação dos princípios que renovaram o jornalismo da Folha em "patrimônio coletivo".