Milho verde, ingrediente que será destaque no festival Fartura

Milho verde, ingrediente que será destaque no festival Fartura Keiny Andrade/Folhapress

Caminho da roça

Terceira edição paulistana do festival Fartura busca a base mais autêntica da cultura alimentar do Brasil

Capítulo 2
Mulheres na cozinha

'Lugar de mulher é na cozinha profissional', diz antropóloga

Elas trocaram o feijão com arroz caseiro pelo comando do restaurante, e ainda há quem as xingue de "piloto de fogão"

A antropóloga Paula Pinto e Silva (Keiny Andrade/Folhapress)

A antropóloga Paula Pinto e Silva (Keiny Andrade/Folhapress)

Flávia G. Pinho
São Paulo

Neste ano, as mulheres representam um terço dos profissionais convidados para a edição paulistana do festival Fartura. E não se trata de obra do acaso.

"Demos uma ênfase especial à presença feminina. Fizemos questão de ter um número expressivo de mulheres de vários estados", afirma a curadora do festival, Luiza Fecarotta.

A tarefa, emenda Luiza, fica cada vez mais fácil, porque o contingente feminino nas cozinhas profissionais do país é crescente.

O caminho para chegar até aqui, contudo, tem sido bem espinhoso e está muito longe do fim, como atesta Paula Pinto e Silva, doutora em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora de temas ligados à história da culinária e da cozinha no Brasil.

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Por que a cozinha profissional foi território masculino por tanto tempo? Tem a ver com o lugar social do homem e da mulher: a cozinha profissional faz parte do universo do trabalho, onde as mulheres não podiam entrar. Eles tinham permissão para atuar fora de casa, mas elas, não. Além disso, é uma profissão que exige técnica e força física, habilidades que, historicamente, nunca foram atribuídas às mulheres. Elas cozinhavam no território doméstico, onde bastava que fossem intuitivas. A cozinha do cotidiano sempre foi considerada menos importante.

Quando essa divisão começou a ruir? No fim dos anos 1990, começamos a ver homens ocupando devagarinho a cozinha doméstica. Mas eles ainda desempenhavam o papel do macho. Tinham as melhores facas e faziam estrepolias culinárias, mas apenas nos momentos de exceção. Fazer arroz com feijão continuou sendo papel feminino.

De que forma as mulheres reagiram? Demorou um pouco, mas acabaram tomando para si o lugar na cozinha profissional. Foi um movimento de inversão: se eles podiam ocupar o espaço doméstico, elas também poderiam entrar na cozinha do restaurante. Claro, esse movimento foi bastante dificultado. Ocupamos o espaço na marra, como fizemos em todos os outros lugares públicos que não eram destinados a nós.

Como esse movimento de conquista de território evolui? As mulheres passaram a demonstrar que queriam um homem diferente, que participasse do preparo da comidinha dos filhos, que fizesse pão e iogurte caseiro. Ainda estamos implorando por esse homem generoso, intuitivo e gentil. Ao mesmo tempo, mulheres ganharam projeção como chefs. Claro que os tempos mudaram, ainda bem, mas os estereótipos não caem de uma hora para outra.

Muito se fala do jeito feminino de cozinhar. Ele existe? Coisa nenhuma. Há homens intuitivos e mulheres altamente técnicas. Esses estereótipos sobrevivem porque o universo da cozinha profissional foi legitimado pelos homens. Não existe, por exemplo, o equivalente feminino para as palavras "sushiman" ou "barman", embora as mulheres já estejam em peso nos bares e restaurantes japoneses.
Quando alguém argumenta que o calor do fogão e o peso das panelas é demais para as mulheres, eu logo respondo: "Meu amigo, você nunca deu a luz!". Outro estereótipo comum é dizer que há muitas mulheres na confeitaria porque temos mãos delicadas e gostamos mais de doces. Eu, por exemplo, detesto doce.

Pode-se dizer que ainda estamos em fase de transição na definição desses papéis? Acredito que sim. Quando as mulheres entraram no mundo do trabalho, assumiram signos masculinos para se firmar e passaram a usar tailleur com ombreiras. Hoje, o ambiente corporativo é mais receptivo, as executivas vão trabalhar de batom vermelho. O mesmo parece acontecer na cozinha profissional.

A figura poderosa do chef-celebridade foi criada pelos machos, que reforçavam sua masculinidade com tatuagens, gritando com os cozinheiros e fazendo cara de mau. Quantos desses signos as mulheres não reproduziram? Acho que estamos no ponto de encontrar o meio termo. Aos poucos, a mulher está deixando de se apresentar como a profissional puramente intuitiva, que cozinha e atende a clientela como se fosse mãe, e também já entende que não precisa gritar para se impor.