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O transplante, hoje

Coração vem de longe e, 51 minutos depois, já bate em novo peito

Técnica atual para transplantes é mais arrojada e gera menos complicações

O cirurgião Domingos Lourenço, à dir., prepara coração doado para ser transplantado em paciente do Instituto do Coração, em São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress

O cirurgião Domingos Lourenço, à dir., prepara coração doado para ser transplantado em paciente do Instituto do Coração, em São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress

Gabriel Alves
Sao Paulo

Mais de 5.000 transplantes depois do de João Boiadeiro, chegou a vez de Eunice Maria Alves, 57. No último dia 10, ela aguardava no leito 4050 do Incor a chance de fazer parte do grupo de cerca de 400 pessoas que recebem um novo coração por ano no país e de retomar atividades simples, como tomar banho sozinha.

Natural de Barra Mansa (RJ), no Vale do Paraíba, ela conhece bem o drama de quem precisa trocar de coração. Seu filho Jhonatan, hoje com 26 anos, passou pelo procedimento oito anos atrás.

Tanto Eunice quanto Jhonatan foram diagnosticados com insuficiência cardíaca idiopática, de origem espontânea e/ou desconhecida.

De manhã, Eunice soube que a equipe estava em busca de um novo coração. O cirurgião Ronaldo Honorato, do Incor, havia viajado a Joinville (SC) para retirar o órgão de uma potencial doadora.

As viagens fazem parte da rotina de Honorato. Hoje, boa parte das cirurgias acontece com o coração obtido de um doador distante, e as cidades do Sul muitas vezes têm uma estrutura que permite um melhor cuidado com o doador.

Enfermeira do Incor e o médico Ronaldo Honorato desembarcam no heliponto do Hospital das Clínicas com coração doado

Enfermeira do Incor e o médico Ronaldo Honorato desembarcam no heliponto do Hospital das Clínicas com coração doado Lalo de Almedia/Folhapress

O coração já estava em trânsito quando Eunice recebeu do cirurgião Fábio Gaiotto, responsável pela equipe de transplantes do Incor, a notícia de que o órgão era bom.

Radiante, agradeceu a Deus e, depois de ouvir de familiares, bastante emocionados, que tudo daria certo, disse: "Prefiro pensar que já deu! Acho que, se eu cheguei até aqui, é porque vai dar certo."
Logo ela foi transferida para o centro cirúrgico para se preparar para receber o novo órgão. A mãe, Neide, 77, e a irmã, Marli, 52, se despedem de Eunice e ficam na torcida.

Marli conta que mudou de opinião sobre transplantes depois de o sobrinho e a irmã precisarem de um. "Não gostava da ideia de enterrar um parente faltando uma parte."

A reação é comum. Entre 40% e 50% das possíveis doações de órgãos são negadas pela família por razões que vão da dificuldade em aceitar a perda de um ente querido a questões religiosas. Muitas vezes há dificuldade em explicar para a família o conceito de morte cerebral –quando a pessoa não tem mais chances de voltar a interagir com o mundo, mas seus outros órgãos continuam funcionando.

O cirurgião Fabio Gaiotto diz a Eunice Maria Alves, 57, que o coração de um doador de Joinville está apto para o transplante

O cirurgião Fabio Gaiotto diz a Eunice Maria Alves, 57, que o coração de um doador de Joinville está apto para o transplante Lalo de Almeida/Folhapress

Entre os órgãos buscados, ainda há perda de cerca de 10% por cuidados inadequados com o corpo do doador e outras complicações.

Uma forma de melhorar a taxa de aceitação, segundo Paulo Pêgo Fernandes, presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), passa tanto pela melhora no convencimento das famílias quanto por uma readequação dos centros transplantadores. "Mesmo na cidade de São Paulo, a estrutura, as equipes e o financiamento desses centros nem sempre são suficientes."

Para remunerar tanto o hospital transplantador quanto a equipe, são desembolsados R$ 50 mil pelo Sistema Único de Saúde. O valor, de acordo com Fernandes, não cobre todos os gastos. "Os planos de saúde só são obrigados a cobrir transplantes de rim e de córnea. Quase sempre as pessoas recorrem ao SUS", conta.

Fernandes lembra ainda que, hoje, de cada 100 doadores, só 15 podem ser usados. Nos melhores centros esse número chega a 35%, 40%. São descartadas as doações de diabéticos graves, fumantes, idosos e pessoas que tiveram parada cardíaca.

Quando o novo coração de Eunice chegou ao complexo do HC, de helicóptero, eram 15h26. Ela já estava havia mais de uma hora no centro cirúrgico sendo preparada: entrou na circulação extracorpórea, teve o peito aberto e o coração antigo removido. Oito minutos depois, às 15h34, o órgão já estava no centro cirúrgico. Às 16h25, já batia no novo lar.

Eunice Maria Alves,57, faz fisioterapia após ser submetida a um transplante do coração

Eunice Maria Alves,57, faz fisioterapia após ser submetida a um transplante do coração Lalo de Almeida/Folhapress

Segundo os cirurgiões Fábio Jatene, do Incor, e Paulo Chaccur, do Instituto Dante Pazzanese, a técnica usada hoje em transplantes –bicaval, na qual a ligação é feita nas duas veias cavas– é ligeiramente diferente daquela usada por Barnard, Zerbini e Shumway –biatrial, que preserva uma boa parte do coração do receptor. A nova modalidade é mais arrojada, dizem, e gera menos complicações.

Coração encaixado, é hora de monitorar o funcionamento do novo órgão para ver se ele dá conta da função, garantir se o fígado está funcionando bem, checar se há sangramentos e fechar o peito.

Eunice acordaria só no dia seguinte, ainda desnorteada. Leva dias até que se recupere a noção de tempo e a força muscular, após meses de cama.

Na semana seguinte, a melhora era surpreendente. Já sentava, ficava de pé, erguia halteres. Ela segue cada vez mais perto de seus desejos pós-cirurgia: continuar a obra da igreja que frequenta e ir a um rodízio de pizzas.