ENTREVISTA - Se recalcular sua rota, Duterte pode ajudar país a cruzar o vale de lágrimas
ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
ENVIADA ESPECIAL A MANILA
Rodrigo Duterte é a síntese de um maquiavélico bastante frio com um populista muito egocêntrico e temperamental.
Suas políticas não são tão diferentes das dos antecessores, mas ele faz questão de ultrapassar os limites na guerra às drogas e na política externa, diz o cientista político filipino Richard Javad Heydarian.
Professor da Universidade De La Salle, em Manila, Heydarian foi conselheiro político do Congresso filipino e se especializou em política internacional.
Para ele, o presidente filipino já começou a tirar do foco a violência contra os entorpecentes, deve se concentrar na diplomacia asiática em 2017 e tem chances de ajudar as Filipinas a "atravessar o vale de lágrimas" e se tornar um país de renda média no futuro.
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Duterte oscila entre "médico e monstro" ou age sempre por cálculo frio?
Não há cálculo em tudo, nem ele é maluco. Duterte se descontrola, mas isso reforça sua imagem de machão. É uma combinação de Hugo Chávez [ex-presidente da Venezuela] com Tayyip Erdogan [presidente turco].
Como Chaves, ele é visionário, ambicioso. Mas diferentemente de Chávez tem amplo espectro: agrada à esquerda e à direita.
Está próximo dos líderes comunistas, mas patrocinou o enterro de Ferdinand Marcos [ex-ditador filipino] no cemitério dos heróis.
Os ataques ao presidente Obama foram descontrole ou cálculo?
Há certa dose de oportunismo. Desde que Trump foi eleito, os ataques aos Estados Unidos e a Obama cessaram.
No cálculo de Duterte, atacar Obama tem baixo risco porque o presidente americano está deixando o cargo em breve e é um sujeito cordato e controlado.
E quando se comparou a Hitler?
Houve só um momento em que o sinal vermelho acendeu e ele imediatamente percebeu que tinha errado, e foi quando se comparou a Hitler. Imediatamente pediu desculpas, foi à sinagoga, tentou controlar os danos.
Quando percebe que seu capital político pode ficar em perigo, ele recalcula a rota. Duterte é a síntese de um político maquiavélico bastante frio com um populista muito egocêntrico e temperamental.
Suas políticas não são tão diferentes das dos antecessores, mas em alguns pontos ele faz questão de ultrapassar os limites, como na guerra às drogas e na política externa.
Seus acenos para a esquerda são convicção ideológica?
Reforma agrária, seguridade social são bandeiras naturais de um populista em um país emergente em que há muita desigualdade, como as Filipinas, a Venezuela ou a Índia.
O tecido social filipino, com seu imenso nível de desigualdade, implica que qualquer político terá que ter algum grau de metas ou pelo menos retórica socialista.
Mas seria injusto dizer que são propostas puramente oportunistas. Há algum grau de ideologia. Mas como Hugo Chávez, que tinha ideia clara da dialética, do materialismo, que acreditava que o bolivarianismo é a forma de lidar com a questão dialética.
Para Duterte, ser de esquerda é simplesmente senso comum em um país tão desigual.
Como ele anuncia proteção aos pobres, que são os principais alvos da guerra às drogas? E como ainda mantém o apoio deles?
Esse é seu lado "castigador". Veja que a contradição é na verdade a essência do sucesso de um populista. Porque o segredo é apelar para a emoção das pessoas, e as emoções são contraditórias.
A personalidade e a política de Duterte são cheias de tons de cinza, quando não tons de branco. Ele nomeou quatro ou cinco secretários muito progressistas em postos chave da linha secundária do Executivo.
Por outro lado, nomeou economistas liberais, empresários e militares para seu gabinete, formou um time com pontos de vista muito diversificados. Sobre a guerra às drogas, a mensagem é: "Preciso ser durão para proteger os mais frágeis e os honestos contra os maus". E muitos filipinos se identificam com isso.
Quão grave é o problema das drogas?
A violência não é tão alta quanto na Colômbia ou no México, mas está bem acima da curva asiática. As taxas de homicídio são altas, e o rigor da lei é muito inferior ao de Cingapura, Malásia ou Indonésia.
As Filipinas são um país menos seguro, e há uma sensação de que a ordem e a lei estão ruindo. Em parte, portanto, pode ter sido o talento de Duterte em ressaltar um problema para vender a solução, mas outra parte é um sentimento genuíno de insegurança da população.
A guerra às drogas, para uma parcela dos filipinos, é só uma parte de um pacote mais amplo de restauração da lei e da ordem. As pesquisas mostram 80% de apoio à guerra às drogas, mas 71% defendem que os criminosos continuem vivos.
Esses 71% podem afetar os 80%?
A população aceita, em teoria, que uma abordagem severa é necessária, e para isso Duterte, com seus modos rudes e voluntariosos, é a pessoa perfeita.
Mas talvez estejam começando a dizer que não concordam com os métodos, e que o presidente precisa recalibrá-los.
Ele fará isso?
Na minha avaliação, é isso que ele está fazendo nos últimos dois meses. Não é mais possível manter uma operação tão chocante, é preciso passar à segunda fase, o que já está acontecendo.
O governo declarou que o governo adotaria uma abordagem de saúde pública, e não apenas policial.
Além disso, Duterte nunca divulgou sua terceira lista de suspeitos, os "high level targets", o que para mim é um sinal de mudança de rota.
Manter a guerra às drogas, mas com outra estratégia, porque a opinião pública e a pressão internacional apontam em outra direção.
Mas as mortes continuam crescendo.
Mudar o rumo para a reabilitação é o passo mais lógico, e Duterte é fundamentalmente um homem lógico, ou não teria vencido tantas eleições. Mas tem também um ego enorme e não quer dar o braço a torcer, quer ser o condutor das ações.
Para reduzir a letalidade da guerra às drogas, precisa encontrar uma nova batalha em que possa mostrar que é durão, que é machão. Performance é um lado muito relevante do populismo, está no coração das escolhas de um populista, e Duterte terá que achar um outro campo em que possa representar seu papel.
Qual pode ser o palco?
Isso não será um grande problema no próximo ano, porque ele será o presidente da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático). Vai receber líderes de outros países, e haverá eventos globais.
As Filipinas vão estar sob os holofotes, e Duterte poderá se mostrar como um estatista de projeção global, mais ponderado, em vez dos destemperos e ameaças.
Claro que não será uma adaptação absoluta, ele é mercurial e imprevisível. Mas a trajetória será no caminho de mais racionalidade.
E na política nacional?
Duterte poderá se manter no centro das atenções com sua campanha pelo federalismo e os acordos de paz com os rebeldes comunistas e muçulmanos.
Tenho brincado com meus colegas: "No fim ele pode acabar ganhando o Nobel da Paz". Porque está no caminho de resolver duas das mais longas insurgências. Mas sobretudo ele pode manter sua força e liderança e elevar sua popularidade com seu "build-build-build moto" [plano de obras].
Uma das coisas que garante o poder dos populistas é a infraestrutura. Foi assim na Europa dos anos 1930, com Mussolini e outros, e é assim com Trump, agora.
Nisso a aproximação com a China ajuda, certo?
Foi um movimento correto reatar os laços com a China, porque a fidelidade americana está sempre sob suspeita, e a vitória de Donald Trump será certamente uma preocupação.
Em retrospecto, ele estava certo. Se existe um país que pode oferecer acesso fácil a capital e mão de obra baratos e a tecnologia é a China. Duterte conta com a China e em algum grau com o Japão para desenvolver a infraestrutura nas Filipinas e depois apresentá-la como sua realização.
Se ele conseguir domar seus demônios interiores, incluindo seu ego, ele poder apresentar no próximo ano uma imagem mais de estadista.
Será difícil combater pobreza e corrupção, que estão na raiz da questão das drogas. Os surenderees [os que assinaram confissões e foram presos ou submetidos a vigilância] voltarão para a mesma vida, a mesma pobreza e a mesma oferta de drogas. A estratégia é mostrar que está atacando o problema, mesmo que saiba que não vai resolvê-lo?
Sim. Populismo tem a ver com atuação, encenação: mostrar que você é um líder forte, capaz de fazer as coisas acontecerem.
Contudo, considerando o quão frágil é o Estado nas Filipinas, em seis anos há muito o que pode ser feito, independente do tipo de imagem que você projete.
Resolver a raiz do problema é viável?
Se Duterte quiser fazer algum progresso estrutural, vai precisar de continuidade. Uma das principais diferenças entre ele e outros populistas de esquerda é que estes são líderes de movimentos.
Duterte ainda precisa cristalizar um movimento que sobreviva a sua administração.
Se ele conseguir criar um partido político forte, que sobreviva a ele daqui a seis anos, e garantir um sucessor que compartilhe seus pontos de vista, é possível ter sucesso em reformas de longo prazo, mais estruturais.
Se não, faz mais sentido se concentrar na encenação. De qualquer forma, quando se trata de combater a pobreza, a economia do país deve crescer aceleradamente nos próximos anos.
Mas de forma desigual, não?
A distribuição da renda ainda será um problema, mas a pobreza poderá ser reduzida significativamente nas próximas duas décadas. Basta continuar as reformas das administrações anteriores e garantir que o mercado não perca a confiança.
Mas acho que o presidente pensa que precisa ir além da estabilidade macroeconômica.
Duterte quer aumentar a inclusão e por isso incluiu em seu ministério políticos tidos como progressistas. O Departamento de Trabalho é importante porque um dos problemas principais, além da pobreza, é a insegurança em relação à renda.
Por causa dos contratos temporários de curto prazo?
Exatamente. É mais um elemento, para mim, que mostra que ele terá que transcender a guerra às drogas.
Se ele realmente quer acabar com o Endo [apelido dos contratos temporários], terá que entrar em conflito com os tycoons, e isso significa que precisa ter muito capital político, muita popularidade e muita propaganda.
Porque os tycoons vão contra-atacar. Farão qualquer coisa que puderem para demonizar o presidente, e eles controlam a mídia e vários setores da sociedade civil, são a oligarquia econômica e política.
Duterte está calculando de quanto capital político ele precisa para lutar essa batalha.
Qual a intenção de patrocinar o enterro do ex-presidente Ferdinand Marcos no cemitério dos heróis?
Foi um erro, acabou dividindo sua base de apoio. É um sinal de que Duterte toma algumas decisões politicamente não muito espertas.
A reforma agrária será outra luta contra a oligarquia?
Uma das coisas que o governo defende é converter terras agrícolas em áreas industriais. Se conseguir, será atacado pela oligarquia agrária, mas terá ao seu lado os empreiteiros. Sou mais otimista que outros analistas.
Na questão ambiental, por exemplo, ele vem fechando várias minas, com sucesso.
E seu ataque a Robert Ongpin [dono da Philweb e um dos empresários mais ricos do Sudeste Asiático] fez as ações do grupo despencarem e forçou a renúncia do seu dono. A mensagem foi clara: ele é capaz não só de atacá-los como de destruí-los.
Agora terá que ao mesmo tempo confrontá-los e agradá-los, e manobrá-los uns contra os outros.
Para acabar com a pobreza, acabar com o endo e fazer a reforma fundiária são imprescindíveis, além do mais importante: criar um ambiente para investimentos.
Seus antecessores trouxeram muito investimento em portfolio [ações, papéis], mas não trouxeram bilhões de dólares em indústrias japonesas e infraestrutura chinesa.
Para crescer, ele vai precisar do "imperativo industrial". Criar indústrias de forma massiva é a única forma realista de um país se desenvolver, e para isso é preciso trazer tecnologia e capital.
Ele pode manobrar suas relações com a Europa e os EUA, mas China e Japão são prioritários.
Dessa forma, ele poderá reduzir a pobreza rural com a reforma fundiária e a pobreza urbana com mais fábricas.
O que dificulta a industrialização?
Não adianta apenas estabilidade macroeconômica, inflação baixa, política fiscal austera, se não houver infraestrutura básica. E de novo aqui a China é muito importante. Ele sabe que não poderá reduzir a pobreza nas Filipinas sem os investimentos e a tecnologia da China e do Japão.
Se conseguir colocar isso em curso em dois ou três anos, terá estabelecido as bases para uma mudança no futuro e as Filipinas poderão se tornar um milagre econômico ("breakout nation"). Estarão nos trilhos para chegar lá.
Ele teria intenção de mudar a Constituição para conseguir um segundo mandato? Ou caminhar para uma ditadura?
O maior temor é que ele faça Bongbong Marcos [filho do ex-ditador Ferdinand Marcos] seu sucessor, não que ele próprio queira ficar no poder.
Se Marcos chegar ao poder, ele estará protegido contra perseguições.
Acho que ele quer ter poder máximo sem precisar passar por controversas mudanças legais. Está mais na trilha de Putin e Erdogan: nenhum deles declarou lei marcial ou mudou a Constituição, mas na prática eles têm um poder maior que o da legislação.
Legalmente falando, eles não afetaram os outros Poderes. Mas de fato eles controlam todo o Estado.
Duterte prefere isso a uma lei marcial ou algo mais drástico. Seja porque ele é esperto, seja porque ele seja mais um durão do século 21 que um durão do século 20.
Mas isso é uma imagem dinâmica, vai depender muito de como a oposição se comportar.
Se a oposição continuar fraca, ele irá na direção de Erdogan. Se a oposição for forte para controlá-lo, mas não o suficiente para deixá-lo em pânico, ele pode ir para um modelo como o de Narendra Modi [primeiro-ministro da Índia].
A Índia é um Estado difuso, disperso, difícil, e as Filipinas são mais como a Índia que como a Turquia ou a Rússia.
Mas, se a oposição se fortalecer a ponto de deixá-lo em pânico, ele pode pensar em algo mais drástico.
Ele tem poder para fazer cessar as mortes extrajudiciais? Esses grupos estão sob seu controle?
Não sei o suficiente para responder, mas posso dizer que o presidente é esperto o suficiente para entender que, se não mudar de estratégia, a situação pode virar uma anarquia e seria difícil para ele ou qualquer outra pessoa controlar.
Duterte não é perfeito nem um democrata exemplar, mas percebe que é preciso mudar.
O que mais precisa mudar?
Duterte não é nem um gênio manobrando os gigantes uns contra os outros, nem um outsider ou um maluco, como dizem na mídia ocidental.
Ele tem senso pragmático do que um país pequeno como as Filipinas precisa fazer quando está no centro de gigantes. Tem a esperteza das ruas. Mas muito da sua vida foi ser prefeito de uma cidade provinciana, por isso ele não e bom nas táticas.
Ele precisava xingar Obama? Não. Poderia recalibrar-se com a China sem isso.
Ao xingar Obama, ele até deteriora sua confiabilidade com os chineses. Não foi um movimento muito esperto.
Duterte tem bom entendimento estratégico, sabe seu alvo final, manter relações cordiais com todas as superpotências, mas ainda é amador nas táticas. Não só os críticos, mas os apoiadores também se desgostaram.
Sua rudeza não é totalmente inofensiva. Pode levantar dúvidas sobre sua credibilidade. Estratégia depende muito dos sinais, das expectativas, e ele precisa dar os sinais corretos.
Duterte é um atirador solitário ou representa um grupo organizado?
Quando ele sente que algo não é sua área, terceiriza totalmente, como na macroeconomia e na reforma fundiária. Mas em certas áreas ele pensa que sabe mais, e não é aberto a conselhos.
É o caso das drogas e da política internacional. Ele segue seus instintos, que até podem ser corretos, mas erra na conduta.
Duterte tem por trás aliados de muito peso, como o ex-presidente Ramos, o mais global dos líderes filipinos, e a ex-presidente Arroyo, maquiavélica em política internacional.
Tem conselheiros de alto nível, mas nem sempre os ouve.
Ele vai melhorar as Filipinas?
Vou evitar a tentação de escapar dizendo que é cedo pra dizer.
Acho que é compreensível por que um cara como ele chegou ao poder. Há um senso geral de que, nas três décadas depois de Marcos, tivemos políticos que, embora respeitassem as regras democráticas e a liberdade de expressão, não tinham energia nem capital políticos suficientes para fazer as filipinas atravessarem o vale de lágrimas.
Esta é a realidade. Se você é um país à busca de desenvolvimento, não há outro caminho que não reformas estruturais de massa, e para isso é preciso alguém extremamente popular, com controle firme e consolidado do Estado, com visão e força para chegar lá.
É cedo para dizer que Duterte é essa pessoa, mas ele tem os ingredientes para sê-la e por isso ele ainda é tão popular e venceu as eleições contra todas as expectativas.