Círculo de fogo

Cemitérios viram favelas "tranquilas" na economia que mais cresce na Ásia.

Aurora Cura, 63, moradora do cemitério municipal de Pasay, na região metropolitana de Manila, segura caixa com maços de cigarro, que vende por unidade aos frequentadores do local; cerca de 50 famílias moram dentro desse cemitério e ganham dinheiro limpando e pintando os túmulos e vendendo comida, bebida, cigarro e outros objetos Vincent Go - 1º.nov.2016/Folhapress
Aurora Cura, 63, segura caixa com cigarros que vende, avulsos, no cemitério de Pasay, onde fez sua casa

Aurora Cura, 63, mora há 35 anos no cemitério de Pasay, na região metropolitana de Manila.

Ali ela criou 7 filhos, dos quais 4 fizeram suas próprias casas aproveitando as paredes dos túmulos, as próprias lápides ou, no caso da família Cura, as árvores do lugar.

Dos filhos já adultos, um trabalha na companhia elétrica e um é garçom; outros dois trabalham vendendo serviços e objetos no cemitério.

Cura mudou-se para Pasay quando o marido morreu, para não precisar pagar alguel. Sobrevive de cuidar das tumbas e vender comida, bebida e cigarros.

O movimento principal é na semana do Dia dos Mortos, quando as famílias praticamente acampam nos cemitérios.

Há diferentes costumes. Alguns passam a noite, outros passam o dia, fazem uma refeição em família. Quando passam pelas vielas, os supersticiosos repetem "tabito, tabito, tabito", pedindo licença aos mortos.

No dia 1º de novembro, Cura vendia cigarros avulsos, por 5 pesos cada um. Num pacote, que custa 60, ela lucra 40 pesos (cerca de R$ 4).

Sua única filha mulher, Mary Anne Pelaez, também mora ali, com os cinco filhos. O mais velho, de 19 anos, está na faculdade de administração.

Vincent Go - 1º.nov.2016/Folhapress
Mary Ann Pelaez, 37, em frente à casa em que mora, dentro do cemitério municipal de Pasay, na região metropolitana de Manila; ela tem cinco filhos, todos moradores do cemitério ---o mais velho está no segundo ano de uma faculdade de administração.
Mary Ann Pelaez em frente à casa que construiu sobre uma árvore do cemitério

Pelaez não votou em Duterte. Apoia a guerra às drogas, mas acha que o principal problema das Filipinas é a falta de trabalho. Nesse cemitério, onde 50 famílias se abrigam, ninguém foi morto desde a eleição.

Com uma população muito maior —estimam-se 3.000 pessoas—, o cemitério Norte não teve a mesma sorte. Um suspeito foi morto durante operação antidrogas da Estação de Polícia 3.

Capaz de arcar com a faculdade do filho —9.000 pesos por semestre—, a moradora de Pasay está no limite superior dos 26% da população considerada pobre, segundo dados de 2015 do do departamento de estatística do governo.

Ana Estela de Sousa Pinto - 1º.nov.2016/Folhapress
Preso pela perna em meio a lápides, galo acompanha movimento no cemitério.
A "sexy artist" Krista Miller (centro) é presa sob acusação de usar metanfetamina

Na extrema pobreza estão 12,1%. A economia Filipina vem crescendo num ritmo de 7% ao ano, mas o custo da miséria ainda é alto: 30% das crianças com menos de 5 anos têm sequelas de desnutrição, segundo a Unicef.

Só 43% têm água encanada, 60% dos filipinos morrem sem nunca terem sido tratados por um médico.

Um terço das famílias vive em casas com menos de 30 metros quadrados e outro terço, em áreas de 30 a 49 metros quadrados.

Em cada 10 famílias pobres, 3 não têm luz elétrica. A Folha encontrou em Manila adultos que nunca tiraram um documento.

Também há grande desigualdade regional, que provoca migração intensa das províncias para a região metropolitana de Manila, fugindo da seca, de movimentos rebeldes ou à procura de trabalho.

Ana Estela de Sousa Pinto - 1º.nov.2016/Folhapress
Corpos são enterrados de forma caótica em cemitério de Pasay, em Manila, e lápides aparecem em várias partes das vielas do lugar
Corpos são enterrados no meio das passagens do cemitério

"A concentração de terras faz muita gente das zonas rurais se mudar para Manila. As regras trabalhistas também não favorecem estabilidade. E a falta de educação de qualidade não permite que as pessoas tenham empregos de qualidade. Além disso, a corrupção no governo não deixa que os serviços públicos cheguem à população", diz o bispo auxiliar de Manila, Broderick Soncuaco Pabillo, 61.

Parte importante da classe média acabou emigrando —são 10 milhões de imigrantes filipinos vivendo em outros países, ou 10% da população.

Sem qualificação, os que ficaram construíram as imensas favelas de tábuas velhas e pedaços de compensado que avançam sobre as águas da baía, dos rios e de canais.