O Castigador

ENTREVISTA - Presidente está levando Filipinas de volta à ditadura

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
ENVIADA ESPECIAL A MANILA

O presidente das Filipinas está transmitindo uma mensagem clara ao matar mais de 6.000 pessoas desde que foi eleito, diz o sociólogo filipino Walden Flores Bello.

Para o professor da Universidade de Manila e ex-deputado de esquerda, Duterte está encaminhando o país para uma ditadura.

"Ele mostrou que é capaz de matar milhares sem ser incomodado. O resto -restringir liberdades civis, assumir poderes ditatoriais- será uma operação 'mopping-up' [pente-fino realizado por soldados para encontrar inimigos remanescentes após vencer uma batalha]."

*

Como Duterte convenceu os filipinos de que combater a criminalidade era uma prioridade a ser perseguida a qualquer custo?

Um primeiro problema é que as pesquisas nem sempre conseguem refletir o que a população pensa.

Se você pergunta aos pobres o que é prioridade entre aumentar empregos, conter inflação, reduzir a pobreza ou controlar a criminalidade, não seria surpresa se os crimes ficarem em quarto.

Mas isso não quer dizer que eles não estejam preocupados com a criminalidade.

Duterte foi capaz de perceber este medo, que seus rivais subestimaram de forma tola.

Estudos em vários países mostram que comunidades urbanas pobres estão tão preocupadas com drogas e crime quanto a classe média.

No caso de Duterte, não apenas ele prometeu combater o problema, mas foi capaz de vender a imagem de que seus métodos extremos controlaram drogas e crimes quando foi prefeito de Davao.

Não acredito que esse discurso tivesse êxito se fosse feito por qualquer outro candidato.

A campanha de Duterte usou as mídias sociais para criar uma sensação de insegurança?

Duterte fez uso intensivo das mídias sociais em sua campanha eleitoral. Parte foi organizada, mas a grande maioria de seu apoio na internet foi espontâneo.

Ele foi capaz de gerar entusiasmo, e seus apoiadores passaram a atacar agressivamente qualquer um que ousasse falar contra Duterte.

Ele foi capaz de detonar uma onda de entusiasmo de massa como ninguém desde o ex-presidente Joseph Estrada.

Muitos motoristas de triciclos (carrinhos puxados por motocicletas), pedicabs (puxados por bicicletas), jeepneys (minônibus sobre carrocerias de jeeps) e táxis saíram de seu caminho para comprar material de campanha de Duterte e espalhá-lo pela cidade, algo inédito.

E multidões esperavam pro ele até quando o atraso chegava a quatro horas.

Fui testemunha, porque estava fazendo campanha pelo país para o Senado na mesma época. Vi com meus próprios olhos o frenesi pró-Duterte.

Corrupção e desigualdade foram solo fértil para o populismo de Duterte?

Sim, sua promessa de acabar com a corrupção e a pobreza usando pulso firme foram parte do seu apelo.

Duterte fazia campanha contra o sistema político e o establishment.

Seus discursos eram repletos de palavrões contra a elite, que ele chamava de babacas. Ele usou uma linguagem brutal e vulgar que contrastou com a da elite, e isso foi muito eficaz.

A corrupção nas Filipinas está profundamente enraizada, como no Brasil, e as pessoas estão cansadas da dupla cara do governo Aquino: perseguir corruptos inimigos e proteger os corruptos aliados.

Duterte também prometeu combater a corrupção. Será capaz?

Será difícil, já que tantos políticos corruptos passaram a apoiá-lo, principalmente depois das eleições.

A ex-presidente Gloria Macapagal Arroyo, por exemplo, e a família Marcos. Muitos integrantes da administração anterior, que respondem a processos.

Combater a corrupção significa que ele terá que perseguir muitos de seus aliados e a elite política.

Não digo que ele não seja capaz, mas, até agora, ele não anunciou um plano para isso.

61% dos filipinos não votaram em Duterte, mas ele tem hoje uma aprovação líquida acima de 65%, mesmo com tantas mortes num dos países mais católicos do mundo. Por quê?

Ele foi capaz de convencer a maioria das pessoas de que sua segurança requer medidas extraordinárias, ainda que elas violem o Estado de Direito e os direitos humanos.

Não acredito que as pessoas estejam apoiando assassinato como forma de resolver conflitos, mas estão dispostas a dar a Duterte o benefício da dívida.

Já a Igreja Católica, no exato momento em que sua voz mais precisava ser ouvida, não foi capaz de confrontar o presidente, porque sua credibilidade está baixa.

A igreja teve medo de que, se fosse contra o presidente agora, ficaria ainda mais abalada.

A guerra às drogas viola o Estado de Direito?

Definitivamente. Até agora, são 6.500 mortos -cerca de um terço em operações policiais. A mídia já deixou claro que é a versão policial -de legítima defesa- é inaceitável.

E as operações de vigilantes [esquadrões da morte] não são ações espontâneas. São um esforço organizado e nacional, e apenas a Polícia Nacional das Filipinas teria essa capacidade.

Os esquadrões são organizados pela polícia. Está claro, pelo relato das testemunhas, o método de usar motocicletas, os cartazes deixados ao lado dos cadáveres.

A guerra às drogas é uma obsessão pessoal do presidente, um fim em si mesma? Ou um meio de atingir algo além?

Acho que é uma obsessão, mas, ao mesmo tempo, um meio para obter poder absoluto.

A mensagem clara é: "Matei todas essas pessoas. Ninguém pode me deter. Eu posso fazer isso contra você também". Até a elite está aterrorizada.

Duterte anunciou reforma agrária e trabalhista? Terá sucesso?

Não acredito que fará a reforma fundiária, porque o bloco da oligarquia não votará a favor no Congresso.

Sindicatos dizem que o governo não tem intenção concreta de acabar com os contratos temporários.

E a política macroeconômica continua focada em crescimento, não em redistribuição.

O presidente apoiou o enterro do ex-presidente Marcos no cemitério dos heróis. Acredita que ele queira se tornar um ditador também? Ou mudar a Constituição para ter um segundo mandato?

Duterte vê em Marcos um modelo a seguir. O enterro no cemitério dos heróis é parte de um esforço para reescrever a história.

Acho que ele tem apoio suficiente no Congresso para mudar a Constituição. As Filipinas se encaminham para uma ditadura? Sim, ele mostrou que pode matar 6.500 pessoas sem ser incomodado. O resto -restringir liberdades civis, assumir poderes ditatoriais- será uma operação 'mopping-up' [pente-fino realizado por soldados para encontrar inimigos remanescentes após vencer uma batalha].