Velórios duram mais de um mês, até família pagar pelo enterro
Em outubro, Emma Bernardino, moradora de Santa Cruz, na Grande Manila, recebeu duas más notícias.
O corpo de seu primo Geronimo Villarante Samaniego Jr. havia sido encontrado na frente de uma faculdade católica em Legarda, a quilômetros dali, com o rosto e as mãos enrolados em fita adesiva.
Vincent Go - 4.out.2016/Folhapress | ||
O corpo de Geronimo Samaniego (esq.), morto por pistoleiros |
Ela estava sendo chamada a reconhecer o cadáver —e arcar com a conta da funerária Saint Rich, uma das credenciadas pela polícia. Eram 67,1 mil pesos, se ela quisesse um caixão novo. Se aceitasse um caixão descartável, o desconto seria de 7.000 pesos.
Desempregada, com três filhos de 17 a 24 anos e sem recursos, Emma pensou em abandonar o corpo. O primo era uma parente distante e havia 20 anos estava envolvido com drogas. Morava nas ruas, depois de largar a mulher e uma menina de um ano, que não queriam mais saber dele.
"Não tive coragem de deixá-lo para trás. Seria horrível para minha tia, que é doente." Com a ajuda do chefe de sua barangay (espécie de subprefeitura, cujo mandatário é eleito), tentou levantar o dinheiro pelo método que vem se tornando tanto usual quando esgotado: promover rodadas de cartas e ficar com comissões dos ganhadores.
Os jogos de azar são proibidos fora de cassinos, a não ser que o objetivo seja pagar um funeral.
Ana Estela de Sousa Pinto - 2.nov.2016/Folhapress | ||
Durante velório em Tondo, moradores jogam baralho para arrecadar dinheiro para pagar o funeral |
Em um mês, levantou 42 mil pesos, ainda longe da soma necessária para enterrar o primo. A funerária a avisou que seria preciso injetar uma nova dose de formol, ou seja, novo custo. Emma negociou o quanto pode, mas ainda ficou devendo 8.000 que se comprometeu, numa nota promissória a pagar em um mês.
No cemitério Norte de Manila, do qual é praticamente vizinha, deixou mais 5.000 como taxa para o enterro. "Concordo com a guerra às drogas, mas as pessoas não podem continuar sendo mortas como galinhas, já tendo se rendido."
O alto custo dos funerais levanta suspeitas para todos. Familiares são acusados de postergar os enterros para ganhar dinheiro com as cartas ou até de alugar cadáveres para quem explora jogos de azar.
Os serviços credenciados, por outro lado, são acusados de extorquir as famílias dos assassinados —muitas delas miseráveis, condição da maioria das vítimas da guerra às drogas.
"Se eu pudesse rejeitar todos eles, seria ótimo", afirma Pedro, dono de uma agência em Pasay, na região do aeroporto. Sua empresa, com 8 capelas privadas e uma pública, tem capacidade para atender cerca de 300 cerimônias por mês. Nos últimos meses, porém, tem recebido mais de 400 corpos.
Damir Sagolj - 19.out.2016/Reuters | ||
Crianças olham veículo funerário que retira dois corpos assassinados em Manila |
"O problema é que 80% dessas famílias não têm dinheiro. Todos os meses, mais de dez mães de família se sentam aqui neste escritório e começam a chorar, porque não têm nem os 10% necessários para poder retirar o corpo."
Pedro diz que prefere enterrar mesmo sem receber todo o valor devido, porque a espera gera custos: "Fico com os candelabros, os suportes, os carrinhos e enfeitos todos presos".
O administrador diz esperar que as mortes terminem logo.
A dificuldade para pagar o funeral faz com que parentes abandonem os corpos nas agências. Em outubro, 29 corpos não reclamados foram enterrados em uma vala comum.
Na funerária visitada pela Folha, sete cadáveres enrolados em plásticos esperavam reconhecimento empilhados no chão, no fundo da sala de autópsia, ao lado de móveis quebrados.
Daniel Berehulak/The New York Times | ||
Agência funerária em Manila guarda corpos cujos familiares não vieram buscar |
A empresa precisa guardá-los por entre 60 e 90 dias antes de enviá-los para enterros em covas coletivas
Há dois meses, seis outros passaram deste prazo e foram retirados. "Precisávamos do espaço, e eles já estavam se deteriorando muito." Desde julho, quando o controverso presidente Rodrigo Duterte tomou posse, já foram 33 corpos destinados a valas comuns.
Erik De Castro - 23.out.2016/Reuters | ||
Caixão de Vicente Batancila, morto com outras quatro pessoas, em Navotas, Metro Manila |
Nas Filipinas, quem morre é embalsamado e os velórios costumam durar alguns dias.
Assassinatos, porém, custam mais que o dobro de uma morte normal para a família, que fica responsável pelo transporte até o local da autópsia, o embalsamamento, o aluguel das instalações da funerária e o registro da certidão de óbito, entre outros.
A conta beira os 50 mil pesos filipinos (cerca de US$ 1.000), o triplo dos 16 mil necessários para sustentar uma família pobre durante um mês, segundo pesquisa de setembro deste ano do instituto SWS, um dos dois principais do país.
O resultado é que as famílias não só perdem um membro que quase sempre contribuía para seu sustento como ficam com uma fatura alta para pagar.
Vincent Go/Folhapress | ||
Michael Acuña, morto por pistoleiros quando arrumava uma motocicleta |
Desempregado, Jorge (nome ficticio) conta com as receitas da mãe, lavadeira, para conseguir pagar as despesas funerárias e enterrar o corpo do filho, Michael Acuña, 25.
Michael é um acidente colateral.
Mascote da cadeia de lanchonetes Jollybee, uma espécie de McDonalds nacional, ele arrumava motocicletas como bico, à noite, sob o holofote de uma obra na rua em que desemboca a viela em que mora, na região de Tondo.
Na noite do dia 29 de outubro, dois homens mascarados se aproximaram e atiraram.
Na mão de seus familiares, um tablet mostra as imagens da câmera de segurança colocada na esquina, uma imagem de baixa definição que é sua única esperança de identificar os criminosos.
No dia 1º de novembro, seu caixão branco de alças douradas foi colocado num espaço de pouco mais de um metro de largura à frente do barraco de sua mãe.
Sob o vidro por onde se via o cadáver, alguns cigarros, uma penca de bananas, sua fruta predileta, e dois pintinhos. Os piados incessantes, no costume local, simbolizam um clamor por justiça.
Vincent Go - 2.nov.2016/Folhapress | ||
Viúva segura um de seus dois filhos, de um e dois anos, no velório de Michael Acuña, 25 |
O pedido é repetido pelos pais, oito irmão e primos que se espremem em cadeiras de plástico laranja na passagem entre o velório improvisado e um riacho cheio de lixo.
Com um bebê descalço no colo, a viúva, de 20 anos, não fala nada.
O casal tem outro menino, de dois anos de idade. Acuña, que quando menino queria ser médico ou policial, tinha ensino médio completo e era a única fonte de renda.
Chamada a investigar o crime, a polícia não encontrou qualquer indício de envolvimento de Acuña com drogas.
"Nem cigarro ele fumava", diz a mãe, que jamais imaginou que a vítima dos tiros que ouviu naquela noite tivessem matado o filho. "Tudo o que ele fazia era trabalhar".
Os indícios são de que tenha sido uma morte por engano. No dia seguinte, um amigo de Michael que usava drogas e estava na watch list da polícia foi baleado no mesmo lugar que ele, durante à tarde. Ainda foi levado vivo ao hospital, mas não sobreviveu.
Vincent Go - 29.out.2016/Folhapress | ||
A mãe de Michael Acuña, na noite da morte do filho por pistoleiros |
Foram as duas primeiras mortes a acontecer na comunidade, na qual nem mesmo buscas policiais haviam ocorrido até então."O custo de morrer está ficando ainda pior que o custo de vida", afirmou o deputado Hodel Batocabe, autor de um projeto de lei que prevê a construção de crematórios públicos, em que o serviço seja de graça para os mais pobres.
Além do custo, Batocabe justifica o Acessible Crematories Act com a falta de espaço. "São 610 mil mortes no país todos os anos. Para enterrá-los todos em novas sepulturas, seria preciso uma área de 1.488 km quadrados (mais que o dobro da região metropolitana de Manila)", diz ele.
Os Acuña esperavam juntar a quantia em uma semana, mas a espera pode durar muito mais.
Vincent Go - 5.nov.2016/Folhapress | ||
Grávida de 7 meses, Ruth Jane e sua filha de 2 anos, no barraco de sua mãe |
No caso de Ruth Jane, a primeira pessoa entrevistada pela Folha em Manila, na segunda-feira, dia 31 de outubro, foram 15 dias.
Ela conseguiu juntar o dinheiro para o enterro do marrido, que foi baleado na sua frente, mas enfrentava dificuldades para sustentar os dois filhos pequenos.
Maquela manhã, tentou obter ajuda no departamento de assistência social. O órgão estava fechado, por causa do feriado do Dia dos Mortos.
No sábado, 5 de novembro, a Folha voltou à casa de Ruth Jane antes de deixar Manila.
Ela havia saído cedo para nova tentativa de ajuda no serviço social.
No primeiro escritório, reclamaram de um erro de grafia em seu documento de identidade. No segundo, afirmaram que ela não morava na área de atendimento.
Como o dinheiro acabara, pediu carona a um motorista de jeepney para tentar chegar ao local indicado. O motorista negou, mas uma das passageiras pagou sua passagem.
Saiu de lá com dois números de telefone anotados a mão, em tinta azul, numa folha arrancada de agenda.
"Disseram que não tinham dinheiro para ajudar agora. É para eu ir ligando para ver se um dia consigo."
Vincent Go - 5.nov.2016/Folhapress | ||
Números de telefone numa folha de papel foi o que Ruth obteve no serviço social |
Desde que o pai de seus dois filhos pequenos morreu, Jane se mudou para o barraco da mãe, que trabalha como lavadeira e durante a semana dorme no emprego.
Como não pode sair para procurar trabalho porque não tem com quem deixar as duas crianças, tem sobrevivido com a ajuda de vizinhos.
Daqui a dois meses, quando seu filho nascer, pretende entregá-lo para adoção.