A ciência vai vencer a luta contra o câncer?

A ciência vai vencer a luta contra o câncer?

Há mais de um século, cientistas compartilham a tentativa de entender um pouco mais o câncer. Nenhum outro conjunto de doenças foi tão estudado e pesquisado. Levantamento mostra que de 2012 a 2014 foram publicados 305.858 artigos científicos sobre câncer. Cientistas, médicos e a indústria farmacêutica apontam três caminhos: imunoterapia (quando o sistema imunológico é fortalecido para combater os tumores), terapia-alvo (que vai direto nas células anormais e preserva as saudáveis) e manipulação de DNA. Alguns estudos põem ênfase também em prevenção e sugerem mudanças no estilo de vida.

A Folha reuniu histórias de pessoas que superaram a doença. E promoverá, nos dias 29 e 30 de março, em São Paulo, seminário com especialistas para discutir o assunto. A medicina vencerá essa guerra? Cientistas afirmam que, se for possível fazer do câncer uma doença controlável como a Aids, o que pode acontecer em algumas décadas, a batalha estará praticamente ganha.

Avanços da ciência

Manipulação genética é vista como promissora contra doença rara

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Nos últimos anos, a sigla inglesa CRISPR (pronuncia-se "crísper") se transformou na grande vedete das principais publicações científicas do planeta. O termo designa um tipo de manipulação genética simples de fazer e relativamente preciso, com potencial para tratar vários tipos de doenças –inclusive o câncer, que invariavelmente surge a partir de mutações no genoma. Será que a CRISPR pode mesmo "desarmar" o DNA dos tumores?

É cedo para dizer, embora as coisas nessa área caminhem numa velocidade acima da média do que se vê na pesquisa básica.

No curto prazo, a tecnologia vai ser útil para entender detalhes da transformação de uma célula normal numa "vilã" tumoral e tentar achar possíveis calcanhares de aquiles do câncer. Mais desafiadora é a tarefa de transformá-la em arma terapêutica capaz de atacar tumores mais comuns, que muitas vezes surgem a partir de uma miríade de alterações no DNA, nada fáceis de rastrear.

"É inegável que existe muito 'hype' em relação à CRISPR, em grande parte porque se trata de uma técnica de edição do genoma muito mais fácil de ser aplicada em qualquer laboratório do que as demais", diz o bioquímico Guilherme Baldo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tenta aplicar a tecnologia ao tratamento de doenças genéticas raras.

 Esse sistema de edição de DNA envolve três componentes (veja quadro). O primeiro é uma espécie de tesoura molecular, cuja especialidade é cortar DNA. O segundo é um pequeno trecho de RNA (molécula "prima" do DNA) que serve como guia: ele identifica uma sequência similar de "letras" químicas no genoma que se deseja editar.

Finalmente, pode-se inserir a sequência "certa" de DNA, suficiente para corrigir um problema genético. Se der certo, o RNA ajuda a "tesoura" a picotar a mutação indesejável, enquanto a própria célula se encarrega de substituí-la com o DNA correto.

Embora a técnica seja muito mais precisa que os métodos tradicionais de manipulação do genoma, não dá para descartar os efeitos "off target", ou seja, quando o pesquisador mira a região X do genoma, mas altera também a região Y, o que pode ser péssimo para a saúde do corpo cujo DNA está sendo editado.

Isso acontece porque o RNA que serve de guia é curto, o que significa que a mesma sequência de "letras" pode estar presente em mais de uma área do genoma (o qualtem cerca de 3 bilhões de letras no caso do ser humano).

Pequenas modificações na tesoura molecular poderiam minimizar esse risco. "Outra possibilidade é usar softwares de análise do genoma que vão predizer a chance de pegar uma região errada por engano. A partir daí, você pode refinar o seu RNA-guia para evitar isso", explica Baldo.

Uma primeira aplicação da técnica, na qual não seria necessário nem usar o DNA "corretor", é o desligamento sistemático de diversos genes para entender o papel deles, separados ou em conjunto, na gênese dos tumores. Só isso já traria avanço para o estudo da biologia do câncer porque, antes do advento da CRISPR, alterações genéticas equivalentes eram muito caras e trabalhosas de obter.  

POLÊMICA PRINCIPAL

As primeiras aplicações terapêuticas da tecnologia talvez aconteçam no caso de tumores mais raros, causados por mutações num único gene que são transmitidas de pai para filho.

"No caso dessas síndromes de causa bem conhecida, você poderia corrigir diretamente aquele gene", explica Martin Roffe, bioquímico argentino que trabalha no hospital A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo.

"Outra possibilidade é que casais portadores dessas síndromes modifiquem seus embriões para que seus filhos não herdem o problema." Essa, aliás, é uma das principais polêmicas em torno do uso da CRISPR em humanos.

A questão, porém, é que a maioria dos cânceres surge a partir de uma grande variedade de mutações, as quais não costumam ser passadas de pai para filho. "Nesse caso, vai ser importante unir a técnica aos avanços da genômica de alto desempenho e da medicina personalizada, porque o ideal será saber o perfil genético completo de cada paciente", diz o pesquisador argentino.

Antes disso, porém, também é preciso achar maneiras mais eficazes de "entregar" o CRISPR às células tumorais. Uma abordagem comum é usar vírus como carregador, mas a desvantagem é que ele não consegue transportar muitos genes ao mesmo tempo, além de poder causar alterações indesejáveis no DNA do paciente.

Já métodos não virais poderiam modificar uma grande quantidade de genes ao mesmo tempo, o que é ideal para o caso de câncer, mas é mais difícil fazer com que "entreguem" a CRISPR ao tumor como um todo.