O Brasil das várias pandemias

Série de reportagens da Folha mostra um tempo em que as relações sociais, a economia, a expressão de fé, a cultura, a comunicação e o luto foram alterados pela pandemia do novo coronavírus

Caminhão em estrada de terra levanta poeira vermelha pelos campos

Caminhão transita por plantações na zona rural da cidade de Florínea (SP) Karime Xavier/Folhapress

Florínea Relações estremecidas pelo preconceito

Capítulo 1
Florínea

Em Florínea, moradores com Covid-19 são hostilizados

Casas de doentes são apontadas como 'do corona' na cidade do interior de SP

Dhiego Maia Karime Xavier
Florínea

"Só não me abandonem", pediu, em lágrimas, Maria Barbosa Meira, 62, aos oito filhos quando soube que estava infectada pelo coronavírus. "Eu chorava o tempo todo. Não saía da minha cabeça a imagem dos mortos dentro de um saco no caixão", conta.

A Covid-19 se manifestou de forma leve na dona de casa. O mais difícil, diz, foi enfrentar o preconceito por ter sido a primeira infectada em sua cidade. "Olhavam pra minha família e diziam: "o coronavírus está perto". Minha filha ia ao mercado e as pessoas corriam dela", diz. "Só melhorou quando a prefeitura avisou que eu estava curada."

Maria vive com o marido, Aldo Vasconcelos, 62, e duas filhas numa casa modesta em Florínea, cidade a 483 km de São Paulo. Eles sobrevivem com a aposentadoria de Aldo, que deixou o trabalho exaustivo no campo por causa de problemas de saúde.

O relato da dona de casa registra os desarranjos afetivos e sociais provocados pela pandemia.

Além das 150 mil vidas perdidas no país, o novo vírus tem criado um clima hostil, sobretudo nas pequenas comunidades, pelo medo do contágio.

A boleira Cristiane Meira, 35, filha de Maria, conta que até seus filhos pequenos também ficaram no alvo do preconceito. "Teve gente que não deixava eles chegarem perto. Senti uma dor muito grande. Durante o maior falatório, sofri sozinha e calada."

Florínea tem 2.653 habitantes. Pouco mais de um terço (36%) da população vive com meio salário-mínimo, sendo a agricultura o motor da economia local. "Essa máscara aqui não é nada diante do que a gente passa todo dia. Mas é preciso trabalhar apesar dessa doença", diz Paulo Domingues, 61, em uma pausa na colheita de milho.

Além de plantações, também há no território da cidade um presídio com 1.535 detentos, número que corresponde a 58% da população. Lá, apenas um preso foi infectado.

A chegada tardia do coronavírus em Florínea causou "um bafafá só", diz Ítalo Garcia, então secretário de Comunicação da atual gestão municipal.

A enfermeira Jane Guimarães Bavaresco lembra que a sensação era a de que a cidade estava errando em algum procedimento. "Todas as cidades entorno já tinham casos, menos a nossa. A imprensa da região chegou a nos acusar de omissão de dados", conta.

As barreiras montadas nos acessos à cidade, a distribuição de máscaras e álcool gel, o fechamento do balneário municipal e o trabalho ostensivo de agentes comunitários no acompanhamento dos casos suspeitos fizeram com que o município demorasse a entrar no mapa da pandemia.

Maria Barbosa Meira, 62, ( à esquerda) foi a primeira moradora a contrair Covid-19 na cidade de Florínea. Na sala de casa, ela está sentada ao lado das filhas, Cristiane Barbosa Meira dos Santos, 35, Ana Luiza Barbosa Meira , 18, e Daniela Barbosa Meira, 37, em pé, o marido de Maria, Aldo Vasconcelos Meira, 62

Maria Barbosa Meira, 62, ( à esquerda) foi a primeira moradora a contrair Covid-19 na cidade de Florínea. Na sala de casa, ela está sentada ao lado das filhas, Cristiane Barbosa Meira dos Santos, 35, Ana Luiza Barbosa Meira , 18, e Daniela Barbosa Meira, 37, em pé, o marido de Maria, Aldo Vasconcelos Meira, 62 Karime Xavier/Folhapress

Até a sexta (9), a cidade registrava apenas 17 casos de Covid-19 e nenhum óbito.

Naquele 6 de agosto em que Maria foi diagnosticada, a prefeitura usou as redes sociais para comunicar a chegada do coronavírus. "Mas todos queriam saber quem era aquele número um", diz Garcia.

Coube a Cristiane, filha de Maria, acalmar os ânimos dos conterrâneos por meio de um comunicado horas depois de a prefeitura confirmar o caso. Em uma rede social, ela postou: "Pessoal, quero informar que a pessoa confirmada com Covid-19 é a minha mãe. Também informo que todos nós da família já fizemos o teste rápido e deu negativo".

A publicação se espalhou como rastilho de pólvora. "Parabéns pela atitude de comunicar, porque nem sempre as pessoas têm essa consciência", comentou uma moradora.

Maria diz que não sabe como se infectou, já que quase não sai de casa. Mas filhos, netos e vizinhos estão sempre por ali. "Só eu peguei. Era para ser", fala.

A idosa foi monitorada por 21 dias de forma remota. Seu quadro de saúde inspirava cuidados porque ela é hipertensa, diabética e fumante. Quando estava com o vírus, ela conta ter sentido febre, tosse e acúmulo de catarro por alguns dias.

O mais preocupante é que ela não conseguiu se isolar em casa, realidade da maioria das famílias de baixa renda do Brasil. "Continuei dormindo com o meu marido e tendo contato com as duas filhas que moram comigo. Só não saía de casa", afirma.

Saber disso foi doloroso para Adriana de Campos, 39, agente comunitária que monitora a saúde da família Meira há 13 anos e a de outras 220 casas do município.

"A filha caçula dela, a Ana Luiza, tem problema cardíaco, é hipertensa e tem Síndrome de Down. Não sei como ela não pegou", conta. "Sou humana e tive medo quando soube que ela estava contaminada. O mais emocionante foi quando ela se curou e me perguntou: "Não vai entrar na minha casa?".

A população de Florínea só se deu conta da gravidade da Covid-19 quando o engenheiro agrônomo João Marcos Pinto, 27, foi levado às pressas para a única UBS (Unidade Básica de Saúde) da cidade, uma semana após o caso de Maria.

João, então contaminado pelo coronavírus, sentiu falta de ar e uma fraqueza que o impediu até de andar sozinho. Com 65% do pulmão comprometido, foi transferido para Assis (SP), a 47 km de distância, porque Florínea não possui UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Ele permaneceu três dias internado.

O engenheiro agrônomo falou com a Folha atrás de um portão do rancho de seu tio Paulo Eduardo Pinto, atual prefeito. É ali que ele cumpria o isolamento social numa tarde de setembro.

Cerca de 20 dias após ter sido infectado, seu teste para a doença ainda indicava positivo. "É muito difícil passar por isso aqui. Eu fiquei muito mal, porque sei que eu levei esse vírus para a minha casa", diz.

O pai e a mãe de João também se infectaram, mas tiveram sintomas leves e já se recuperaram. Mesmo assim, a casa da família também tem sido alvo de preconceito.

"A nossa casa está sendo conhecida como o endereço do corona. Acho isso muito desrespeitoso, porque a gente não pegou essa doença por querer", diz. "Eu sei que quando eu sair dessa situação também serei alvo das piadinhas."

Já Maria agradece por estar viva e ter tido seu pedido atendido no momento "mais difícil" de sua vida. "Meus filhos não me abandonaram", chora.

As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira