Acampados à beira do rio Xeruã, afluente do Juruá, os denis se dividem e se multiplicam em diversas atividades antes de partir em busca do mítico pirarucu.
Rápidos e de bom humor, pescam aruanãs, pacus, piranhas e tucunarés para as refeições, armam redes sob barracas de lona, constroem a escada para vencer o barranco, ajustam as malhadeiras, revisam as rabetas (motores de barco de baixa potência) e reforçam o flutuante.
À sua maneira, os denis são um dos povos do Médio Juruá que aderiram ao manejo do pirarucu, cadeia produtiva que une organização social, controle do território, exploração racional de recursos naturais e geração de renda.
Longe dos garimpos e das frentes do desmatamento, essa vasta região conectada por 650 km do sinuoso rio Juruá aposta no pirarucu e em outras cadeias produtivas para viver bem com a floresta em pé. Um arranjo que envolve cerca de 35 mil pessoas, espalhadas por 5 milhões de hectares, segundo estimativa do Instituto Juruá.
A transformação começou com a demarcação das terras indígenas e das reservas extrativistas, enterrando a ameaça de expulsão de suas casas e as relações de trabalho análogas à escravidão. Outra consequência foi a redução da pesca predatória realizada por grandes barcos vindos de Manaus.
Até um passado recente, os denis viviam acossados pelos donos de seringais, seringueiros, pescadores, madeireiros e comerciantes. As doenças trazidas pelo homem branco provocavam tragédias sucessivas. No início dos anos 1990, eles quase deixaram de existir por causa da tuberculose e do sarampo.
A situação só passou a melhorar após 2003, com a demarcação do território de 1,5 milhão de hectares entre os rios Juruá e Purus. Hoje a população estimada é de cerca de 2.000 pessoas.
"Antes da demarcação, não tinha mais peixe nem pirarucu em nenhum dos lagos porque o branco tinha tomado o nosso rio", diz o presidente da Aspodex (Associação do Povo Deni do rio Xeruã), Pha"avi Hava Deni, 25. "Quando teve demarcação, resgatamos o pirarucu, a caça, porque a gente faz preservação. Tem área que a gente não caça nem pesca. Por isso que hoje estamos de boa."
O manejo de pirarucu também é feito pelos ribeirinhos do Juruá. Em trajetória semelhante à dos denis, trabalhavam em situação análoga à escravidão para donos de seringais e madeireiros, que grilavam terras ou obtinham posse de enormes áreas de terras públicas a preço de banana.
Com a ascensão do movimento seringueiro amazônico, liderado por Chico Mendes (1944-1988) e outros nos anos 1980, começa a criação das reservas extrativistas. Na região, há duas: a Resex (Reserva Extrativista do Médio Juruá), federal, criada em 1997, e a RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) Uacari, estadual, de 2005.
Cada atividade ocorre em determinada época do ano. A pesca do pirarucu se dá uma vez por ano, no período da vazante, por volta de setembro, e envolve uma logística complexa.
Concentrados em lagos, os pirarucus, após capturados, precisam ser levados até um grande barco com gelo, no rio Juruá. Dali, seguem para Carauari, depois Manacapuru e Manaus –via fluvial, a capital está a 1.540 km de distância. Uma parte da produção já chega a grandes cidades do país, incluindo São Paulo.
Nos denis, o projeto começou a ser estruturado a partir de 2009, com apoio da Opan (Operação Amazônia Nativa). Uma das primeiras etapas foi realizar a contagem de quantos pirarucus existiam no território, processo repetido anualmente.
A técnica, criada por ribeirinhos da região de Mamirauá, em Tefé (AM), consiste em contar o pirarucu quando ele sobe à superfície –a sua respiração é branquial e aérea. A contagem é feita por etapas em todo o lago, em ciclos de 20 minutos, o intervalo máximo entre duas "boiadas".
O contador precisa também diferenciar os pirarucus adultos dos juvenis (bodecos), de até 1,5 metro, cuja pesca é proibida. Maior peixe de escamas de água doce do mundo, o pirarucu pode chegar a 200 kg e 3 metros.
Na contagem mais recente, no ano passado, o território dos denis somava cerca de 3.300 pirarucus, em lagos divididos em três categorias previstas pelo protocolo: uso comunitário, manejo do pirarucu e vetado à pesca.
Em 2021, os denis pescaram cem pirarucus em pouco mais de dois dias. O número precisa ser autorizado pelo Ibama, que permite a pesca de até 30% do estoque nos lagos manejados. Fora do manejo, a pesca está proibida.
A reportagem acompanhou a pesca de 2021, da qual participaram quatro das cinco aldeias da região do Juruá. Por causa das distâncias, elas se reúnem em um grande acampamento entre os lagos e a foz do Xeruã, onde um barco com gelo aguarda o pirarucu.
A mesma vazante que deixa o pirarucu concentrado nos lagos também dificulta a navegação. No período acompanhado pela reportagem, o "cano" (conexão entre lago e rio) para chegar ao lago Abelha Velha tinha apenas alguns centímetros de água. A ida durou uma hora e foi relativamente tranquila, com exceção dos vários tucunarés que voavam para dentro do barco.
O problema foi voltar com as canoas abarrotadas do peixe gigante. Em média, cada um pesava 61 kg. Mas o recorde de 2021 chegou a 110 kg e 2,24 metros de comprimento.
Os denis se viram obrigados a sair da canoa para arrastá-la sobre o leito quase seco, arriscando-se a pisar em uma arraia. Algumas viagens de volta duraram quatro horas e só chegaram quando a noite já havia caído.
A alguns quilômetros dali, na RDS Uacari, a logística era relativamente mais fácil. O lago do manejo estava próximo do rio. Um quadriciclo rebocava os peixes até o barranco. Para descer até o barco, onde o pirarucu era eviscerado e colocado no gelo, foi construído um escorregador de madeira. A força é tanta que um deles rompeu a parede e foi parar no porão do barco, onde está o motor.
Toda a produção do manejo no Médio Juruá é comprada pela Asproc (Associação dos Produtores Rurais de Carauari). Fundada em 1991 por ribeirinhos com forte apoio da Igreja Católica, ela tem sido a grande responsável pelo ciclo virtuoso da região.
À época, o objetivo principal era superar décadas do sistema de aviamento, pelo qual o seringueiro se endividava com o patrão ao trocar a borracha por produtos vendidos a valores exorbitantes. Também lutavam para a criação de reservas extrativistas, para afastar a insegurança fundiária dos ribeirinhos.
Uma das medidas da Asproc foi criar uma rede de "cantinas", entrepostos de comercialização. Na RDS Uacari, por exemplo, uma sandália Havaianas é vendida por R$ 14,50, preço semelhante ao das grandes cidades.
O princípio do preço justo inclui também a compra da produção. No caso do pirarucu, a Asproc paga R$ 7 o quilo, o valor mais alto do Amazonas. No rio Purus, por exemplo, o preço é R$ 5,5/kg.
Além da renda, o manejo também ajuda na recuperação da população do pirarucu, assolado pela pesca desordenada. Em 11 anos de manejo, a população do pirarucu cresceu 425% na região, de acordo com o Instituto Juruá.
Uma das principais lideranças da região, o chefe da Resex Médio Juruá, Manoel Cunha, 58, afirma que o manejo do pirarucu reforçou o trabalho comunitário e, ao mesmo tempo, melhorou a renda dos ribeirinhos.
"O manejo é uma atividade que não há possibilidade de fazer sem o coletivo", diz ele, que administra uma área de 287 mil hectares, onde vivem 524 famílias, incluindo a sua. Ali 90% participam do manejo do pirarucu, segundo Cunha.
"Isso começa a trazer a organização do grupo. Você mobiliza pessoas pelo bolso, do ponto de vista negativo ou positivo. Quando a lei de trânsito dá uma multa porque você atravessou o sinal vermelho, quer se mobilizar negativamente. O pirarucu mobiliza pelo lado positivo, você está fazendo um esforço que é ter sua comunidade organizada para ganhar mais dinheiro."
No caso dos denis, o dinheiro não é distribuído entre as famílias, mas depositado na conta da associação, que usa parte dos recursos para financiar o próprio manejo e guarda outra parte.
"O manejo funciona principalmente no fortalecimento do povo", afirma Leonardo Kurihara, coordenador de projetos da Opan. "É celebração, consolidação, reconhecimento da sua terra demarcada. A parte econômica está destinada ao fortalecimento da organização deles."
Nas unidades de conservação, os reflexos positivos foram medidos em pesquisa publicada em outubro pela revista acadêmica PNAS. O estudo compara as condições socioeconômicas de cem comunidades espalhadas por 2.000 km ao longo do Juruá.
Segundo o estudo, os moradores das reservas extrativistas têm mais acesso a serviços públicos, como saúde, escola e eletricidade, e a bens duráveis (geladeira, barco a motor) do que ribeirinhos de fora da unidade de conservação.
O resultado é que, enquanto apenas 5% dos moradores das reservas extrativistas querem migrar para a cidade, esse índice sobe para 58% entre os que vivem em áreas sem proteção.
"O Médio Juruá está se destacando porque tem uma ação muito forte de associações locais e parceiras que vêm manejando os recursos de forma eficiente", afirma o biólogo João Campos Silva, primeiro autor do artigo e presidente do Instituto Juruá.
"As unidades de conservação e terras indígenas catalisam uma série de ingredientes importantes: lideranças e associações fortes e múltiplos parceiros, sejam ONGs, empresas ou prefeituras", completa.
Com o início do governo Jair Bolsonaro (PL), a região sofreu um baque por causa do congelamento do programa Fundo Amazônia, formado principalmente por recursos doados pela Noruega. No passado, projetos, como o barco da Asproc que transporta o pirarucu dentro das normas sanitárias, haviam sido financiados pelo fundo. Hoje há cerca de R$ 2,9 bilhões parados.
"Foi horrível, absurdo. Nós tínhamos um projeto aprovado no último edital, concorrência pública, que tentava consolidar essa experiência que estamos fazendo", afirma Adevaldo Dias, 48, assessor da Asproc e presidente do Memorial Chico Mendes, sediado em Manaus.
"Tínhamos a ideia de construir uma fábrica de polpa de frutas, das frutas da floresta, e uma unidade de distribuição do pescado em Manaus. Hoje é uma dificuldade chegar lá, às vezes, não conseguimos nem espaço para essa produção mesmo alugando. Tem época que está tudo muito cheio", completa.
Sem o dinheiro do Fundo Amazônia, a Asproc usou os recursos do seu capital de giro para montar um frigorífico em Carauari, em setembro. Até então, todos os pirarucus precisavam ser levados para Manacapuru. Agora parte da produção já sai embalada e pronta para o consumo.
A associação também conta com vários apoiadores em projetos específicos, incluindo Usaid (agência oficial humanitária dos EUA), Natura, Coca-Cola, Petrobras, Opan, FAS (Fundação Amazônia Sustentável), entre outros.
"A solução dos problemas que a gente ouve no noticiário são as unidades de conservação, pensando a floresta, o meio ambiente e as famílias", conclui o presidente da Asproc, Manuel Siqueira, 45. "Aqui é o contrário do que se prega: unidade de conservação significa desenvolvimento."