Na cirurgia robótica, médico opera coração por joystick

KARINA PASTORE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
São 13h28. Na "sala do futuro", como os médicos chamam o maior centro cirúrgico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, o paciente jaz, sob efeito da anestesia geral. Ligado à uma máquina de circulação extracorpórea, seu coração está parado. Como se fossem as patas de uma aranha gigante, os quatro braços do robô da Vinci estão fincados no lado direito do tórax do homem de 65 anos.
A dois metros dali, sentado em um console, joysticks nas mãos, o cirurgião cardíaco Robinson Poffo, 45, pede: "Silêncio. Reduzam as luzes, por favor". A cirurgia robótica começa.
O paciente é vítima de insuficiência da válvula mitral, doença caracterizada pelo comprometimento do fluxo sanguíneo no coração. A operação visa a reconstrução dessa estrutura.
O robô está conectado ao doente por três pequenas incisões entre as costelas, na região entre o mamilo e a axila. Dali até o coração são 30 centímetros de distância. Um braço leva uma câmera de 12 milímetros de diâmetro. Tridimensional, de alta definição, a imagem obtida pelo da Vinci está aumentada de 10 a 15 vezes.
Através dela, fios de sutura da largura de um fio de cabelo parecem cabos de aço. A pinça de dois centímetros ganha a dimensão de um anzol para peixes grandes. Com 8 milímetros de diâmetro, cada um, os outros três braços carregam tesouras, pinças, bisturis, fórceps... Uma quarta incisão, de quatro centímetros, é usada pelos auxiliares para a passagem dos fios de sutura e do aspirador.
Sob os comandos suaves de Poffo, os braços do robô (180 kg e 2,2 metros, cada um) estão em movimento. A viagem começa. A primeira estrutura cardíaca a aparecer é o saco pericárdico, membrana que envolve o coração.
Levado pelo terceiro braço do robô, o afastador mantém a película levantada, abrindo o caminho para os outros braços. Em seguida, atinge-se o átrio. Cortado e afastado, ele permite que o da Vinci chegue a seu destino. "Toda vez que abro um coração e vejo uma válvula mitral, fico em êxtase", diz Poffo. "O robô não tem tato, mas você consegue sentir as texturas."
BALÉ DE MÃOS
As lentes da câmera embaçam. Poffo reclama. Postados ao lado do paciente, os dois auxiliares removem-nas do corpo do paciente. Enquanto isso, em uma espécie de balé com as mãos, Poffo simula no ar a sequência dos próximos movimentos a ser feita com o robô.
"Antes de entrar em cirurgia, já operei mentalmente o paciente uma centena de vezes", diz o pioneiro da cirurgia cardíaca robótica no Brasil. Desde 2010, já operou 42 vezes com o da Vinci.
Uma hora e meia depois do início vem a parte mais delicada, a reconstrução da válvula mitral. Vistas pelas lentes do da Vinci, as pontas dos dois braços do robô parecem ter vida própria, em um vaivém sincronizado de pinças, agulhas e fios que refazem a estrutura cardíaca. É uma cirurgia quase sem sangue.
Às 16h17, os braços do robô começam a ser recolhidos. É o início dos procedimentos para desconectar o paciente das máquinas. Uma hora depois, o coração do homem volta a bater sozinho –112 batimentos por minuto. "Maravilha", comemora o cirurgião.
A cirurgia robótica é uma das conquistas tecnológicas mais notáveis da medicina. Suas origens remontam aos anos 1980, com o desenvolvimento das microcâmeras e da laparoscopia.
Graças à nova técnica, cirurgias até então abertas puderam ser realizadas por pequenas incisões. As semelhanças entre a laparoscopia e a cirurgia robótica, no entanto, terminam aí. Além de mimetizar os movimentos da mão humana, o robô chega às regiões mais recônditas do organismo sem forçar nenhuma estrutura.
Ele dispõe de um filtro de tremor: qualquer gesto involuntário do cirurgião é barrado pelo robô. A câmera laparoscópica fornece imagens bidimensionais, exibidas em um monitor, em geral, no alto, à frente do cirurgião.
"Na realidade, tanto na aberta como na laparoscópica e na robótica, a cirurgia é a mesma", diz o urologista Anuar Mitre, 65, coordenador do Centro de Cirurgia Robótica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. "A vantagem está na menor agressão ao paciente, uma recuperação mais rápida e menos dolorosa e uma volta mais precoce às atividades normais."
Gustavo Lacerda/Folhapress | ||
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Médico controla robô durante cirurgia no A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo |
Se o paciente do médico Poffo tivesse sido submetido à cirurgia tradicional, o osso esterno teria de ser serrado e o peito, aberto -o que aumenta o risco de infecções e a necessidade de transfusão de sangue. O tempo de recuperação seria de 30 a 40 dias. Na cirurgia robótica, 90% dos pacientes despertam ainda no centro cirúrgico. Passam um dia na UTI e, em cinco dias recebem alta.
DO CARRO PARA A CURA
"A robótica é o presente e o futuro da cirurgia", diz o gastroenterologista Antonio Luiz Vasconcellos Macedo, 64, do Einstein, especializado em cirurgia minimamente invasiva e robótica. O robô beneficia também o médico. O cirurgião opera sentado, com o braços e a cabeça apoiados no console.
Por enquanto, o da Vinci é o único do mercado. Fabricado pela americana Intuitive Surgical Devices, é uma adaptação dos robôs da indústria automobilística e começou a ser desenvolvido nos anos 1990.
A ideia era usá-lo em cirurgias remotas, nos cuidados de soldados feridos em batalha. Viu-se logo que não funcionaria por causa das limitações da internet. Imagine o estrago provocado por um delay, no caso de uma hemorragia. A cirurgia robótica só é possível em tempo real.
Os primeiros procedimentos com o da Vinci ocorreram no início dos anos 2000, nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, a técnica só chegou em 2008. São 500 mil cirurgias robóticas realizadas todos os anos, no mundo. E a tendência é de aumento. Até dois anos atrás, só dois hospitais brasileiros ofereciam a tecnologia -o Einstein e o Sírio. Hoje são 13.
A robótica está disseminada nas cirurgias urológicas, ginecológicas e do aparelho digestivo. Nesses campos, opera-se na cavidade abdominal e quanto mais fundo, mais os olhos do cirurgião se afastam da região e menos espaço ele tem para trabalhar. O recurso facilita a chegada do cirurgião lá. "Com o robô, a sensação que se tem é a de que o cirurgião está com a cabeça dentro do abdome do paciente", diz Gustavo Guimarães, 44, cirurgião oncológico e diretor de urologia do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
Em hospitais de referência americanos e europeus, só se faz prostatectomia (extração total da próstata) por cirurgia robótica. O tempo de operação é menor, e o paciente sangra menos. A taxa de transfusão, conforme estudo publicado em 2010 na revista da Associação Europeia de Urologia, é de 1,4% na prostatectomia com o robô contra 3,5%, na laparoscopia, e 20%, na aberta. O paciente tende ainda a recuperar mais rapidamente a continência urinária e a potência sexual.
CUSTO E BENEFÍCIO
Ainda que com menos entusiasmo do que nos anos 2000, até hoje se discute o custo-benefício da cirurgia robótica. Do ponto de vista financeiro, no Brasil, uma operação com o da Vinci custa em, média, R$ 7.000 a mais do que uma laparoscopia.
O robô, em si, não é o mais caro. Seu preço equivale ao de um aparelho de ressonância magnética, cerca de US$ 3 milhões. As pinças é que encarecem. Ao preço de US$ 3.500 cada, elas só podem ser usadas, no máximo, dez vezes. As de laparoscopia, até 60 vezes.
Os convênios de saúde ainda não cobrem os custos de uma cirurgia robótica. Poucos hospitais brasileiros operam com o da Vinci pelo SUS. Entre eles, Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira, Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, Hospital de Câncer de Barretos e o Hospital das Clínicas de Porto Alegre.