Futuro

Terapia gênica renova esperanças para enfrentar de Aids a câncer

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REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na loteria genética que produz o organismo humano, algumas pessoas tiram a sorte grande: suas células são naturalmente imunes ao vírus da Aids. E se fosse possível transferir esse "superpoder" imunológico para todo mundo por meio de alterações no DNA?

Essa é uma das possibilidades levantadas por estudos recentes na área da terapia gênica, um ramo de pesquisa que, após uma sucessão de reveses, tem passado por uma espécie de renascimento.

Em parte, esse alento se deve ao aparecimento de novas técnicas de manipulação do material genético, que aumentaram a precisão e diminuíram os riscos ligados à alteração do DNA com fins terapêuticos.

Além disso, exemplos desse tipo de terapia finalmente chegaram ao mercado dos países desenvolvidos nos últimos anos, após décadas de pesquisas.

O mecanismo básico da terapia gênica não poderia ser mais simples, ao menos no papel. Imagine que uma doença é causada por um pequeno defeito na sequência de "letras" químicas de DNA que compõe o genoma de uma pessoa. Para consertar o problema, bastaria enxertar as letras corretas.

Um jeito simples de fazer isso é produzir em laboratório um vírus sob medida -afinal, os vírus são mestres em enfiar cópias de seu próprio DNA em genomas alheios- que atuaria como vetor, carregando o DNA salvador para dentro das células do doente.

Dito desse jeito, parece fácil. Além da dificuldade de levar o vírus até as células que serão alvo da terapia, no entanto, há o risco de que o DNA carregado pelo vetor entre no genoma de modo desajeitado, bagunçando um conjunto essencial de letras químicas, por exemplo.

Isso aconteceu em certos testes da tecnologia em pacientes humanos no passado, chegando a levar alguns dos doentes à morte.

A esperança de contornar esse problema tem se fortalecido com o advento de algumas técnicas de biologia molecular de nome impronunciável, como a das nucleases dedos-de-zinco e a CRISPR. Elas são conhecidas como técnicas de edição do genoma, porque permitem que os cientistas alcancem com relativa precisão um conjunto de letras do DNA e as arranquem de lá (dependendo do caso, também podem substituí-las pelo trecho desejado).

Os limites dessa precisão ainda estão sendo investigados, já que, em tese, mais de uma área do genoma poderia conter as letras usadas como alvo por essas técnicas.

"Ainda não há pesquisa básica suficiente para avaliar o risco de efeitos off-target, ou seja, modificação do genoma em sequências parecidas do DNA", diz Rafael Linden, especialista em terapia gênica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Mas creio que isso não deve demorar, exatamente por conta do número de cientistas envolvidos hoje em pesquisa sobre edição gênica."

AIDS

No caso de uma possível prevenção contra o HIV, bem como no caso de doenças que afetam as células do sangue, pesquisadores estão combinando técnicas de edição do genoma com terapia celular.

Nesses casos, modifica-se geneticamente uma célula progenitora (ou seja, que dá origem a outras células) do próprio paciente, suas descendentes são cultivadas em laboratório e reinseridas no organismo do doente. Ao se multiplicar, elas vão substituindo lentamente as células "com defeito".

Essa é uma maneira de evitar as dificuldades associadas ao uso de vetores virais, diz Eugenia Costanzi-Strauss, do Laboratório de Terapia Gênica do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Além disso, "em teoria, um único tratamento poderia trazer benefícios para toda a vida do paciente", afirma.

Embora a terapia gênica tenha começado como ferramenta para enfrentar doenças raras e hereditárias, que afetam um único gene (enquanto o DNA humano tem dezenas de milhares), hoje predominam os testes envolvendo doenças complexas e ligadas a diversos fatores, como o câncer, diz a pesquisadora da USP.

"Essas doenças, em princípio, são passíveis de protocolos nos quais os genes terapêuticos são modificadores, ou seja, participam do complexo processo que desencadeia o problema, embora não se possa atribuir a patologia a um só desses genes", explica Linden.

Há, por exemplo, a possibilidade de estimular a formação de vasos sanguíneos em um coração que já não bombeia o sangue com tanta eficiência, ou de levar ao suicídio células cancerosas -pelo menos é o que preveem os especialistas da área.