Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus
Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus

Natureza do Desastre

Governos falham, e brasileiros são forçados a deixar suas casas e conviver com desastres naturais recorrentes

Capítulo 1
Introdução

Desastres naturais deslocam 6,4 milhões de brasileiros desde 2000

Inundações e enxurradas são as maiores causas de deslocamentos, e Amazonas e Santa Catarina, os estados mais atingidos

Marina Estarque
Amazonas e Santa Catarina

Quando uma tempestade se aproxima e as pessoas correm para casa, Ana se apressa para deixar a sua. Tem sido assim em todos os dias de chuva desde o início de janeiro, quando um deslizamento destruiu a casa do vizinho e por pouco não levou a de Ana Paula Alves, 34, em Blumenau (a cerca de 150 km de Florianópolis).

Em uma segunda-feira de verão, quando a reportagem a visita uma semana depois do desastre, um vento forte chacoalha as árvores, e o dia escurece novamente no bairro de Ana. Sua boca fica seca, ela ri de nervoso. "Estou com o coração na mão, olha o que está vindo. A gente precisa sair daqui", avisa, interrompendo a entrevista e apontando a saída da casa.

Pai caminha com a filha nos ombros em frente a casa vizinha à de Ana Paula Alves, em Blumenau (SC)

Pai caminha com a filha nos ombros em frente a casa vizinha à de Ana Paula Alves, em Blumenau (SC) Eduardo Knapp/Folhapress

Como tem ocorrido com frequência neste período de chuvas, ela e o irmão correm para a porta da igreja, na base do morro. Debaixo da marquise, veem apreensivos a tempestade despencar com força sobre a casa de madeira, que, há quatro gerações, abriga a sua família.

"Hoje é a prova. Se não cair, é porque aguenta", diz o irmão, Symon Alves, 20. Os dois moram sozinhos desde que a mãe morreu. Symon trabalha como pintor, e Ana acaba de perder o emprego. Com os olhos fixos no morro, ela conta como a mãe reformou o imóvel do bisavô com o dinheiro que ganhou no Baú da Felicidade. "É difícil abandonar a história de uma vida inteira, mas, se tivesse para onde ir, já tinha saído daqui", diz ela, angustiada com o temporal.

Assim como Ana e o irmão, milhares de brasileiros vivem atualmente em áreas de risco, são desalojados ou desabrigados por desastres naturais e ficam sem o amparo das diferentes esferas do poder público.

Segundo levantamento do Instituto Igarapé, ao menos 7,7 milhões de brasileiros foram forçados a se deslocar nos últimos 18 anos. Dentre eles, 6,4 milhões ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais, o equivalente a um a cada dois minutos. O levantamento do instituto é baseado em informações reportadas pelas Defesas Civis de estados e municípios ao governo federal, por meio do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID).

Ana Paula Alves, 34, observa desmoronamento ao lado de sua casa, em Blumenau (SC)
Ana Paula Alves, 34, observa desmoronamento ao lado de sua casa, em Blumenau (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress

Uma pessoa é considerada desalojada quando é forçada a sair da sua casa, ainda que por poucos dias, mas consegue outra habitação ou é acolhida por parentes e amigos. Já o desabrigado depende de um abrigo ou moradia concedidos pelo poder público.

De acordo com a pesquisa, os desastres que mais deslocam brasileiros são as inundações (45%) e enxurradas (32%). O Amazonas aparece como o estado com maior número de deslocamentos por desastres naturais no período, cerca de 840 mil, seguido de Santa Catarina, com 805 mil. A cidade de Ana, Blumenau, é apontada como o município brasileiro mais afetado: foram 137.598 desabrigados e desalojados por desastres naturais desde 2000. Em 2008, o estado de Santa Catarina foi atingido por fortes chuvas, que deixaram ao menos 135 mortos e 78 mil desalojados e desabrigados.

Apesar da magnitude do problema e o número de pessoas atingidas, as políticas públicas e os órgãos de prevenção e gestão de desastres naturais têm sofrido com cortes de verbas e redução de funcionários nos últimos anos. Após a tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, considerada o maior desastre natural do país, com mais de 900 mortos, houve avanços na área, mas muitas iniciativas foram abandonadas. Por exemplo: em 2012, o governo prometeu investir R$ 15,6 bilhões em obras de prevenção até 2014, o que nunca foi cumprido.

Além disso, o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), órgão federal criado em 2011, teve o orçamento reduzido e mantém parados equipamentos no valor de quase R$ 14 milhões. Os instrumentos, que seriam usados para coletar dados e embasar alertas de desastres, foram comprados em 2013 e 2014 e não puderam ser instalados ou estão sem manutenção por falta de verbas.

A redução de investimentos na área tem impacto direto na vida de milhares de brasileiros afetados por inundações, deslizamentos e enxurradas, entre outros. "As políticas públicas para lidar com o deslocamento por desastres no Brasil, de maneira geral, são centradas na reação e na recuperação. A falta de uma cultura de prevenção tem um grande custo e contribui para que o número de deslocados permaneça alto ao longo dos anos", afirma a pesquisadora do Igarapé, Maiara Folly.

Mesmo em momentos de urgência, entes públicos costumam falhar em garantir os direitos dos desabrigados e desalojados. "É comum que a demora no repasse de recursos faça com que o funcionamento de abrigos dependa quase, ou exclusivamente, de doações da sociedade civil e de organizações humanitárias", diz Folly.

Muitas vezes abrigos se tornam também espaços de violação de direitos, segundo o sociólogo e pesquisador do Cemaden Victor Marchezini. "Alguns são dominados pelo tráfico e há casos de toque de recolher. São múltiplas violações, que intensificam o sofrimento social", afirma.

Direito à moradia

A situação de precariedade se repete para famílias que moram em áreas de risco e precisam de soluções permanentes de moradia. A lei 12.608, de 2012, trata de desastres naturais e, dentre vários pontos, define responsabilidades do poder público em relação ao direito a habitação das pessoas atingidas.

A legislação determina que compete ao município "prover solução de moradia temporária" às vítimas e, em caso de remoção, garantir "atendimento habitacional em caráter definitivo". Também estabelece que programas habitacionais em geral devem "priorizar a relocação de comunidades atingidas e de moradores de áreas de risco".

No entanto, como a lei ainda não foi regulamentada, não há detalhes sobre como esse atendimento deve ser realizado. "Estamos há seis anos esperando essa regulamentação. Isso mostra que não é uma política de Estado", diz Marchezini, pesquisador do Cemaden.

Questionada, a Casa Civil do governo Michel Temer (MDB) disse que regulamentação está "em fase final de discussão e análise". Segundo o Ministério da Integração Nacional, o documento está "aguardando assinatura e publicação da Presidência da República."

Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik, não existe uma política nacional de moradia para pessoas atingidas por desastres. "Cada município atua de um jeito. O que se faz é um atendimento e abrigamento provisórios, normalmente usando equipamentos públicos, como escolas. E depois esquece", afirma ela, que foi relatora especial da ONU para o direito à moradia de 2008 a 2014.

Segundo Rolnik, o país tem "uma máquina de produção de vulnerabilidade a desastres". "As pessoas vão morar em áreas de risco porque não têm outra opção. Mas moradia é um direito humano, previsto na Constituição e em marcos internacionais", diz.

Em muitos casos, os municípios recorrem ao aluguel social, mas especialistas afirmam que os valores costumam ser insuficientes para pagar uma moradia equivalente. Em Manaus, onde famílias vivem dois meses por ano em casas inundadas de água suja, o aluguel social é de R$ 300 por mês. Em Blumenau, é de R$ 400. Em muitas situações, famílias atingidas ficam desamparadas, como é o caso de Ana.

Naquela segunda-feira, após o temporal amainar, os dois irmãos retornaram para casa. "Falei que aguenta, ó, é forte", disse Symon, numa tentativa de acalmar a irmã. "Você está sendo otimista demais", ela respondeu.

De fato, cerca de duas semanas depois do deslizamento, Ana recebeu um laudo da Defesa Civil de Blumenau, confirmando o que ela já suspeitava. "Não se recomenda o uso e ocupação da edificação, haja vista a condição de perigo/alto risco", dizia o documento.

No entanto, até meados de fevereiro, Ana continuava na mesma situação. "Eu pago IPTU, aqui nunca foi ocupação irregular. Me deram uma cesta básica e ofereceram aluguel social de R$ 400 por mês, mas com esse valor não dá para pagar nem uma quitinete", afirma.

Segundo a Prefeitura de Blumenau, foram muitos atendimentos emergenciais durante a enxurrada de 16 de janeiro, e a Defesa Civil deu prioridade a pessoas que estavam em casa –Ana e o irmão passaram alguns dias na casa de amigos, mas foram obrigados a voltar.

"Normalmente o prazo do laudo, em períodos sem crises, é de no máximo cinco dias", diz a administração. Sobre o aluguel social, a prefeitura afirma que é um valor "preestabelecido e aprovado no conselho competente".

Rio Itajaí, que passa pelo centro de Blumenau (SC)
Rio Itajaí, que passa pelo centro de Blumenau (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress

Saúde

Em casa, Ana passou a se sentir mal fisicamente. "Estou esgotada, já chorei litros. Acabei ficando doente, estou com uma infecção e dores na barriga."

As consequências são comuns em afetados por desastres, segundo Rolnik. "A exposição contínua ao risco é um estresse. E ser forçado a sair de casa é uma violência psíquica. A pessoa não quer sair e não escolhe para onde vai. Isso tem um impacto na saúde, muitos ficam doentes, com depressão, principalmente os idosos", diz.

Além disso, há o trauma do desastre. No caso de Ana, ela e o irmão estavam em casa quando o deslizamento ocorreu. Chovia muito, e a rua parecia um rio. Ela olhava o temporal pela janela, quando ouviu estalos violentos. "Foi um barulhão, o chão tremeu todo. Vi as árvores quebrando, o barro descendo e a casa ao lado sendo destruída. Foi terrível. Gritei para o meu irmão: 'Corre, que a nossa casa vai cair'."

O pânico continua a acompanhar a rotina dos dois. "Estou muito assustada. Em dia de chuva a gente dorme com a porta aberta ou na entrada da igreja, com um cobertor." Os troncos também atingiram parte do seu telhado. "Cai água dentro da casa inteira agora."

Além dos prejuízos materiais, a destruição de uma moradia é uma perda dolorosa, difícil de assimilar. O vizinho de Ana, que teve a casa arrasada pelo deslizamento, volta diariamente à rua para revirar os escombros e buscar lembranças.

Com 87 anos, Dorvalino da Silva foi forçado a se mudar para a casa dos filhos depois do deslizamento. Por sorte, ele estava fora quando o imóvel foi atingido.

Casa de Dorvalino da Silva, 87, destruída num deslizamento em janeiro deste ano, em Blumenau (SC)
Casa de Dorvalino da Silva, 87, destruída num deslizamento em janeiro deste ano, em Blumenau (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress

Desde então, acorda às 4h30, faz suas orações até 5h30 e, às 6h10, pega o ônibus a caminho da sua antiga casa. Ali, restam apenas algumas paredes de alvenaria, com uma árvore caída no centro, cadeiras retorcidas, móveis quebrados, muito barro, uma geladeira tombada e aberta, com alimentos apodrecidos. Mesmo assim, Dorvalino insiste em procurar "algo que se aproveite".

"Ele leva uma sacola plástica e tenta juntar o restinho de coisa que tem. Não adianta contrariar. Aquilo ali era a vida dele", explica a filha, a dona de casa Regina Lichtenslez, 57.

Dorvalino não quis falar sobre a sua perda. "Está muito abalado", justifica a filha. "Construiu tudo aquilo [a casa] com o próprio esforço. Cresceu ali dentro, teve oito filhos ali, ficou viúvo ali."

No novo lar, Dorvalino tem lapsos: se põe a buscar objetos e se frustra quando não os encontra. "Eu explico para ele: 'Você não tem mais, lembra?' Não caiu a ficha", afirma a filha, com pena, e repete: "Aquilo era a vida dele".