Há cem anos, 'A Metamorfose' abalava a literatura com apenas um parágrafo
SYLVIA COLOMBO
EM BUENOS AIRES
Tida hoje por muitos como uma das mais famosas histórias de horror da literatura contemporânea, "A Metamorfose" foi lida pela primeira vez por Franz Kafka (1883-1924) a seus amigos, em Praga, em meio a sonoras gargalhadas.
O jovem escritor tcheco tinha 29 anos e nada do perfil sombrio que se construiu dele após sua prematura morte, aos 40, por tuberculose."Kafka era e queria parecer um artista radical. Era alegre, muito namorador, gostava de se vestir bem, de sair, fazia imitações hilárias das pessoas e possuía um grande senso de humor", diz Modesto Carone, o primeiro a traduzir a obra ao português diretamente do alemão.
A imagem de alguém angustiado que se celebrizou depois também provocou a ideia de que Kafka fosse um homem mirrado. Não é o que dizem as biografias. Tinha, na verdade, 1,80m e pesava 80 quilos."Kafka não sofria, não era homem triste. Sua fama póstuma de ser atormentado é falsa. Tinha uma moto, jogava tênis e visitava bordéis", diz à Folha o poeta espanhol Manuel Vilas.
Reprodução/Excavating Kafka | ||
O escritor tcheco Franz Kafka (dir.) na praia em julho de 1914 |
Naquele outono de 1912, após três semanas de intenso trabalho, Kafka pôs ponto final nesta curta e perturbadora história do vendedor-viajante que desperta e se dá conta de que se transformou numa espécie de inseto repugnante.Seu primeiro parágrafo já continha o clímax da trama: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso".
"É um parágrafo essencial que marcou a literatura ocidental. O fato central da história ocorre pouco antes de a narrativa iniciar, e a trama se desenrola sem jamais ser explicado o que de fato ocorreu", completa Carone.Por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-18), a publicação de "A Metamorfose" foi sendo adiada e só ocorreria três anos depois de ter sido escrita. Saiu pela primeira vez em outubro de 1915, na revista alemã "Die WeiBen Blätter. Dois meses depois, ganharia uma versão em livro, com o título de "Die Verwandlung". Sua publicação completa agora, portanto, cem anos.Dois anos depois, numa manhã de agosto, Kafka amanheceu tossindo sangue, começava o pesadelo da doença, que duraria até 1924, quando morreu.
Pouco antes de ir-se, Kafka pediu ao amigo, Max Brod, que queimasse seus escritos não-publicados. Não era o caso de "A Metamorfose", que lhe dava muito orgulho. De todo modo, Brod não o obedeceu, e é por conta disso que hoje conhecemos muito de sua obra. Kafka deu a mesma orientação a Felice Bauer, mas a namorada foi mais fiel a seu pedido, destruindo o que estava em seu poder.
MEIA METAMORFOSE?
Não é apenas a razão da transformação que fica sem explicação. A reação do protagonista, Gregor Samsa, e o rumo de seus pensamentos ao longo da narrativa alimentaram debates literários em várias gerações. Um dos mais célebres nomes da literatura mundial a debruçar-se sobre "A Metamorfose" foi o russo Vladimir Nabokov (1899-1977).
O autor de "Lolita" dedicou-se a investigar em detalhe como era o apartamento dos Samsa, que espécie de inseto Gregor teria se transformado (há desenhos dele de próprio punho) e em que ponto da metamorfose se encontrava.Em uma palestra, Nabokov disse "Ele [Gregor Samsa] está meio desperto apenas —se dá conta de seu infortúnio, com uma aceitação infantil, e ao mesmo tempo ainda possui memórias humanas, um vínculo com a experiência humana. A metamorfose ainda não está completa."
De fato, Gregor elabora seus pensamentos e consegue entender o que dizem sua irmã e seus pais, mas, quando tenta falar, não reconhece o ruído esquisito que sai de seu boca.A família aos poucos se acostuma, e passa a tratar Gregor como um assunto rotineiro, uma questão logística, até mesmo a irmã, que a princípio parecia mais sensibilizada.No texto de introdução de uma das edições norte-americanas, o cineasta David Cronenberg, crê que aos parentes de Gregor faltou um pouco de imaginação: "Não ocorre a eles, por exemplo, que um inseto gigante tenha comido o rapaz".
O cineasta canadense filmaria uma história de metamorfose também amedrontadora, o filme "A Mosca" (1986).
VISIONÁRIO DO TOTALITARISMO
O fato de ter de certo modo previsto o efeito dos totalitarismos europeus por meio de textos como "A Colônia Penal" colaborou para a fama de ensimesmado e soturno.É certo que em estão dicas do que poderia ser o pesadelo do Holocausto, que de fato vitimou suas três irmãs, enviadas a Auschwitz e mortas nas câmaras de gás.
UMA BARATA
Quando se referia à história aos amigos ou à namorada, Felice Bauer, Kafka a chamava de "the bug piece" (a história do bicho). Com os editores, porém, foi bem mais rígido. Não queria que a imagem do inseto aparecesse na capa de jeito nenhum."É comum que as pessoas digam que é uma barata, mas Kafka nunca quis que isso ficasse claro. Sabemos que é um inseto nocivo e repugnante. Apenas isso", diz Carone.
A sugestão do autor era que a ilustração da capa do livro fosse a de uma porta sendo aberta devagarzinho, com pessoas olhando para dentro do quarto, com ar de curiosidade e susto.
KAFKAESCO
Um dos efeitos criados pela publicação de "A Metamorfose" foi a disseminação do termo "kafkiano" para designar, de uma forma geral, situações absurdas que intrigam e perturbam a mente humana.
O crítico literário e biógrafo Frederick Karl assim se referia à banalização do uso do termo: "não se pode dizer que é 'kafkiano' não conseguir pegar um ônibus porque há algum problema com o sistema. Mas as pessoas assim o fazem".
Como disse Will Self em entrevista à Folha, nos dias de hoje transformou-se apenas num sinônimo de "surreal", quando deveria ser aplicado para designar um estado de suspensão da realidade, um pesadelo que segue depois que a pessoa acorda.
Como dickensiano e proustiano, o fato é que kafkiano entrou para o uso comum. O termo invadiu também a cultura pop, dando nome até mesmo para o título de um episódio da série "Breaking Bad". O dicionário Oxford assim o define: "Usado para descrever uma situação que é confusa e assustadora, especialmente envolvendo regras complicadas e sistemas que não fazem sentido"."É um contra-senso usa-la para designar algo surreal, porque a história não é surrealista, mas sim muito realista, e é por isso que causa incômodo", diz Carone.
A confusão que se faz nos dias de hoje é reforçada também pelos movimentos que a leitura de Kafka geraram. Na América Latina, o mais célebre autor a citar a obra como referência foi o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014). Em uma entrevista à "Paris Review", Gabo disse: "Quando li a primeira linha, pensei comigo que eu não sabia que se podia escrever coisas assim. Então comecei com meus contos".
NO BRASIL
A história de "A Metamorfose" em livro no Brasil começa em 1956, com tradução feita do inglês, de Brenno Silveira, pela Civilização Brasileira, mas com uma tiragem pequena (mil exemplares). Segundo a tradutora Denise Bottmann, autora de "Kafka no Brasil", a disseminação da obra do escritor aqui deu-se com maior volume nos anos 1960, com traduções realizadas por Torrieri Guimarães, com base em edições em espanhol publicadas na Argentina.
Com um detalhe curioso. O selo argentino Losada anunciara que a tradução que lançara pela coleção "La Pajarita de Papel" havia sido feita por Jorge Luis Borges (1899-1986). Porém, o pesquisador argentino Fernando Sorrentino descobriria, muitos anos depois, que Borges não tinha realizado o trabalho, apenas autorizara o uso de sua assinatura.
"As primeiras traduções de Kafka no Brasil foram feitas a partir dessa suposta tradução de Borges. De fato, a Losada apenas republicara uma versão da "Revista de Occidente" madrilenha, de 1925", conta Bottmann.
As primeiras traduções de Kafka feitas diretamente do alemão ao português são de Carone, projeto que teve início nos anos 80, pela Brasiliense, e completou-se na década seguinte, na Companhia das Letras. Desde então, "A Metamorfose" já vendeu 120 mil exemplares para o mercado e aproximadamente 10 mil para o governo, no programa de distribuição para bibliotecas.
TRANSFORMAÇÃO OU METAMORFOSE
Neste centenário da história, os tradutores para o espanhol da obra voltaram a debater a questão. A tradução mais correta do alemão "verwandlung" é "metamorfose" ou "transformação". Os que defendem a última apoiam-se no próprio Borges, que dizia que chamar a novela de "metamorfose" era "um disparate".
Já os que creem que o título se inspira no poema mitológico de Ovídio, traduzido como "As Metamorfoses".O editor catalão Jordi Llovet, que chamou o texto de "La Transformacion", em edição da Galaxia Gutenberg, defende sua opção. "Metamorfose tem raíz grega, transformação, latina, mas as duas palavras significam a mesma coisa."
"Mesmo que hoje se chegue num consenso de que 'transformação' é mais apropriado, não dá, já ficou célebre como 'metamorfose' e pronto", encerra a discussão Carone.