LOBOTOMIA

Cirurgia teria acelerado a morte

O médico argentino Daniel E. Nijensohn, do Departamento de Neurocirurgia da Universidade de Yale, analisou as chapas de raio-x feitas pelo militares no corpo embalsamado de Evita em 1955.

Segundo ele, essas chapas mostram que ela foi submetida a uma lobotomia na fase final da doença.

Leia abaixo a entrevista com o neurocirurgião.

Folha - Quando começaram suas suspeitas de que Eva Perón teria passado por uma lobotomia?

Daniel E. Nijensohn - Havia rumores desde os anos 1950, mas apenas em 2005 um dos médicos que havia participado da cirurgia, o dr. George Udvarhelyi, do hospital da Universidade Johns Hopkins, fez essa revelação numa entrevista ao jornal "Baltimore Sun".

Com um grupo de colaboradores, entre eles o médico argentino Luis Savastano, da Universidade de Michigan, buscamos as evidências que confirmassem isso. Por fim as encontramos, sendo as principais as chapas de raio-x que mostram as perfurações no crânio.

Junto com o jornalista Nelson Castro, entrevistamos Manena Riquelme, que trabalhou como assistente do dr. James L. Poppen.

Johns Hopkins Medicine
O médico húngaro George Udvarhelyi, que morreu em 2010, em imagem de 1955
O médico húngaro George Udvarhelyi, que morreu em 2010, em imagem de 1955

Surgiram então relatos de pessoas que ouviram de Poppen a confirmação de que ele realizara tal procedimento.

A história da lobotomia foi tratada como segredo de Estado na Argentina, e creio que revelamos algo que não se esperava nem se desejava que viesse à tona.

A explicação dada por Perón a seu círculo íntimo, na época, era a de que a lobotomia serviria para reduzir as dores de sua mulher. Por que o sr. acredita que poderia haver também outra explicação?

As lobotomias, àquela época, eram indicadas em três casos: controlar doenças psiquiátricas, aliviar a dor resultante de uma doença terminal e controlar a personalidade e o comportamento violentos.

Infelizmente, a cirurgia por essa terceira razão era amplamente realizada no sistema prisional dos EUA e recomendada por cirurgiões reconhecidos como um meio para conter a inquietação civil. Também era usada em muitos países como um instrumento para acalmar dissidentes e presos políticos.

Pesquisa realizada por cientistas políticos, como Loris Zanatta, da Universidade de Bolonha (Itália), demonstram que a relação entre Eva e Juan não era a mítica e romântica que prevalece no relato oficial. Isso que nos contavam quando eu era criança, na Argentina, hoje sabemos que não foi bem assim.

Evidências recentes indicam que ambos representavam opostos ideológicos dentro do movimento peronista.

Arquivo Pessoal
O neurocirurgião argentino Daniel E. Nijensohn e a enfermeira chilena Manena Riquelme
O neurocirurgião argentino Daniel E. Nijensohn e a enfermeira chilena Manena Riquelme

Essa ideia foi muito criticada como "setentista", uma vez que foi nos anos 1970 que houve o terrível embate entre os dois lados do peronismo –no episódio conhecido como o Massacre de Ezeiza (1).

Quando Evita se deu conta de que estava doente e de que poderia sair de cena logo, ficou mais determinada e mais decidida –e de forma agressiva– a perseguir seus objetivos políticos.

Isso se manifestou em vários chamados que fez a apoiadores para que pegassem em armas. Também ditou um documento pessoal revelando seu fanatismo e sua beligerância. Comprou armas da Holanda e orientou o treinamento de trabalhadores na província do Chaco.

Reprodução/
Perón ao voltar temporariamente à Argentina, novembro de 1972; o 'massacre de Ezeiza' ocorreu em 1973
Perón ao voltar temporariamente à Argentina, novembro de 1972; o 'massacre de Ezeiza' ocorreu em 1973

Seu plano era juntar um exército pessoal de umas 40 mil pessoas, sem o conhecimento das Forças Armadas e de Perón. Sua base política era a força econômica e política da Fundação Eva Perón, que a essa altura tinha um grande orçamento.

Em setembro de 1951, ela ficou enfurecida com Perón, porque soube que ele havia cedido à pressão dos militares e vetado sua candidatura à Vice-Presidência.

A lobotomia era um procedimento normal na Argentina àquela época?

O "establishment" médico argentino era muito sofisticado naquele tempo. Lobotomias eram realizadas desde os anos 1940 no país. O procedimento era realizado em vários hospitais. Mas os cirurgiões argentinos não se atreveriam a operar Eva, suponho. Vivendo na Argentina, eles relutariam em se transformar no alvo da raiva dela.

Sabendo disso, decidiu-se trazer o dr. James L. Poppen, de Boston, para a operação. Ele também era considerado um dos melhores neurocirurgiões do mundo e um pioneiro nas lobotomias desse tipo. Ele ficou em Buenos Aires por um mês. Temos fotos dele com os principais personagens desse drama.

O segredo era tanto que o procedimento foi realizado num dos quartos da residência oficial, e não num hospital, com guardas armados postados dentro do recinto.

Lobotomia
Lobotomia

Sem a lobotomia, Evita teria vivido mais?

Ela parou de comer depois da lobotomia e ficou muito suave, uma "figura patética", nas palavras do dr. George Udvarhelyi, que a acompanhou nesse período. Seu diagnóstico era o de uma paciente terminal.

A doença era mortal, mas a lobotomia acelerou seu fim.

Qual pode ser o impacto dessa nova revelação?

Essa é uma história muito sensível na Argentina, mesmo nos dias de hoje. Não tenho intenções políticas, e estou atuando como um cientista.

Os apoiadores de Evita se chateiam em pensar que ela se transformou numa espécie de zumbi lobotomizado no fim da vida e, principalmente, que ela tenha sido operada sem consentimento informado.

Ainda que isso a vitimize, adicionando o item martírio aos argumentos daqueles que a adoram como uma santa, é difícil para eles admitirem que ela estivesse, sim, ao final da vida, clamando por uma guerra civil.

Por outro lado, apoiadores de Perón não aceitam que ele possa ter pedido que se fizesse uma lobotomia em sua mulher. Dizem que é inconcebível que ele possa ter sido tão cruel, ainda que alguns argumentem que estava agindo como um chefe de Estado, evitando uma guerra civil.

Tenho de dizer que, como médico e argentino, essa ideia também me causa distúrbio.

Arquivo Pessoal
O neurocirurgião argentino Daniel E. Nijensohn
O neurocirurgião argentino Daniel E. Nijensohn

Quais são seus próximos passos nessa pesquisa?

Sou um médico, um neurocirurgião, um professor de neurocirurgia.

Estou interessado em discutir a ética e o profissionalismo do ofício. Tento não esquecer o tempo e o lugar em que essas coisas aconteceram, era um outro contexto.

Ainda que acredite que o dr. Poppen tenha atuado com as melhores intenções para aliviar a dor da paciente, também estou convencido de que ele era inocente e que caiu numa rede política que ele não poderia ter antecipado.

A revista "New Yorker" publicou, recentemente, um artigo sobre a conspiração em torno da morte do promotor Alberto Nisman, em janeiro.

Isso mostra que o assunto da lobotomia de Eva tem significado contemporâneo.

As evidências mostram que o dr. Poppen ficou abalado pelo resto da vida por ter participado dessa história, na qual foi levado, por ordem de Perón, a testar a operação em prisioneiros em cárceres de Buenos Aires.

Planejo continuar a pesquisa, com foco em questões de ética em neurocirurgia.

Textos: Sylvia Colombo
Coordenação: Luciana Coelho
Infografia: Alex Borba
Edição: Luiz Antonio Del Tedesco