LOBOTOMIA

As recentes descobertas

A história do diagnóstico e do tratamento da doença que matou Eva Perón de maneira precoce, aos 33 anos, em 1952, vinha envolta em mistério até que, em 2010, duas linhas de investigação se encontraram.

Hoje, os resultados de ambas vêm à tona.

Uma delas é a do jornalista e médico Nelson Castro, apresentador de um programa de entrevistas na TV argentina, colunista do jornal "Perfil" e autor de livros sobre medicina e poder.

Castro reuniu, pela primeira vez, depoimentos de médicos que trataram de Evita e resgatou relatos escritos daqueles que já haviam morrido.

Alguns jamais tinham se atrevido a comentar publicamente o que haviam presenciado. Primeiro, porque fizeram um acordo de silêncio com Perón; depois, porque após o golpe militar de 1955, perderam empregos públicos e foram proscritos.

Castro ainda realizou viagens para entrevistar a enfermeira chilena Manena Riquelme, que trabalhou com o neurocirurgião James L. Poppen. Por fim, topou com uma outra investigação, que estava sendo realizada por dois médicos argentinos nos EUA.

Os doutores Daniel E. Nijensohn, do Departamento de Neurocirurgia da Universidade de Yale, e Luis Savastano, da Universidade de Michigan, realizaram estudos nos raios-x feitos pelos militares em 1955, quando queriam comprovar que o corpo embalsamado de Evita era mesmo um cadáver. O embalsamento fora tão bem feito que os militares chegaram a desconfiar que o corpo no caixão fosse uma boneca.

Reprodução
Imagens do raio-x do crânio de Eva Perón feitas pelos militares em seu cadáver, em 1955
Imagens do raio-x do crânio de Eva Perón feitas pelos militares em seu cadáver, em 1955

Perdidas por muitos anos, essas chapas, segundo Nijensohn, atestavam que Eva havia sido submetida, em fase avançada da doença, a uma lobotomia, fato até então completamente desconhecido.

Em entrevistas à Folha, Castro e Nijensohn explicaram e comentaram seus achados.

Juntos, eles demonstram que o relato contado oficialmente sobre o fim de Eva Perón contém falhas.

Primeiro, porque, diferentemente do que foi dito ao povo argentino e à própria Eva, o diagnóstico de sua doença foi feito muito tardiamente. Quando descoberta a enfermidade, já não havia mais chances de salvá-la. Mas Perón, em plena campanha eleitoral para a eleição de 1951, manteve as esperanças acesas, mesmo sabendo que elas eram muito poucas.

Arquivo pessoal
O dr. James Poppen e a enfermeira Manena Riquelme, que trabalhou como sua assistente
O dr. James Poppen e a enfermeira Manena Riquelme, que trabalhou como sua assistente

Depois, os dois revelam que uma intensa disputa política entre médicos e ministros afetou de modo negativo o tratamento.

E, por fim, Nijensohn levanta a suspeita de que a lobotomia possa ter sido usada para conter um comportamento agressivo da mulher de Perón, que nos meses finais de sua vida se opunha às alianças políticas que o general fazia para reeleger-se.

Ela já havia encomendado 5.000 pistolas automáticas e 1.500 metralhadoras, cujo função seria equipar um exército de sindicalistas.

As armas de fato chegaram –mas após a morte de Eva–, e Perón as encaminhou para o Exército.

"É importante esclarecer exatamente o que ocorreu, pois Evita e Perón são ícones da Argentina. Como suas histórias alimentam um folclore político, é importante saber se aquilo que se diz que aconteceu com eles é verdadeiro ou falso. Há quem critique, que diga que não vale a pena mexer nisso. Mas é nossa história, e enquanto não esclarecermos o que houve no passado não poderemos estar em paz com o presente", diz Nelson Castro.

"Além disso, há uma discussão de caráter histórico –que envolve as reais decisões políticas tomadas por Perón naquele momento– e uma de incumprimento do código de ética médica, porque agora sabemos que se mentiu para Eva todo o tempo. São discussões pertinentes para a medicina e para a política argentina", conclui.

Já o doutor Daniel Nijensohn diz: "Quando deparamos com conspirações de segredo e de morte que ocorrem nos dias de hoje, como a do promotor Alberto Nisman, vemos o significado atual dessas descobertas. Não é possível colocar um manto sobre as circunstâncias da morte de personalidades como essas".

No ano passado, Castro lançou o documentário "Lobotomia" e o livro "Os Últimos Dias de Eva - História de um Engano".

Reprodução
Capa do livro
Capa do livro "Os Últimos Dias de Eva", de Nelson Castro

Já Nijelsohn divulgou artigo no mais recente número da revista "Neurosurgical Focus" com suas conclusões sobre a lobotomia praticada em Eva.

O estudioso afirma que o médico norte-americano chamado para realizar a operação, o dr. James L. Poppen, antes de operá-la, já havia feito testes em detentos e era um especialista em usar o procedimento para reduzir a agressividade de pacientes.

Arquivo pessoal
O dr. Poppen (esq.) com o colega Ricardo Finochietto
O dr. Poppen (esq.) com o colega Ricardo Finochietto

'CONDENAÇÃO À MORTE'

Tudo começou no dia 10 de janeiro de 1950, quando Eva passou mal durante um ato no sindicato dos motoristas de táxi em Buenos Aires.

Diagnosticada de forma equivocada como sofrendo de apendicite, foi levada à mesa de cirurgia.

O médico que a operou, porém, notou que o apêndice estava em perfeito estado e desconfiou que as dores de Eva poderiam vir de uma lesão no colo do útero. O doutor Oscar Ivanissevich recomendou-lhe então um exame ginecológico.

Eva, bem a seu estilo intempestivo, respondeu: "Eu não tenho nada. Querem me eliminar para que eu não me meta na política". E saiu do consultório aos gritos.

"Sua ideia de que aquilo era mais uma conspiração para tirá-la da política foi sua condenação à morte. Quando, um ano e oito meses depois, a doença eclodiu e foi feito o diagnóstico de câncer, já era tarde demais", diz Castro.

Eva havia alimentado até então a intenção de se candidatar como vice-presidente na chapa de Perón. Tinha o apoio da CGT (Confederação Geral do Trabalho) e de vários sindicatos. Contava, ainda, com boa parte do eleitorado feminino, que pela primeira vez na história iria votar, graças à lei de 1947, pela qual ela lutou para que fosse aprovada.

Mas o general, que dependia do apoio dos militares, cedeu à pressão exercida por estes, que não queriam Eva no governo por considerarem-na muito belicosa.

Eva teve de renunciar à candidatura e, a partir de então, passou a acreditar que era alvo de um complô dos oficiais.

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Comício do Partido Justicialista em 22 de agosto de 1951, quando Evita renunciou candidatar-se à Vice-Presidencia
Comício do Partido Justicialista em 22 de agosto de 1951, quando Evita renunciou candidatar-se à Vice-Presidencia

Mesmo com o diagnóstico tardio, os esforços para salvá-la não foram poucos. Uma equipe de médicos se instalou no palácio Unzué, então residência presidencial do país. Um lugar que ficaria tão relacionado à agonia de Eva que se transformou em local de peregrinação depois de sua morte.

Após o golpe de 1955, uma das primeiras coisas que os militares fizeram foi destruir o palácio Unzué. Depois, foi construída no local a Biblioteca Nacional Argentina.

Naquele final de 1951, porém, o prédio vivia rodeado de soldados do Exército, que não raro acompanhavam os próprios procedimentos médicos –o casal Perón temia que um atentado pudesse ser cometido por um dos médicos. Do lado de fora, uma multidão de apoiadores passou a se aglomerar diuturnamente.

O doutor Jorge Albertelli, chefe da equipe de ginecologistas, foi obrigado a dormir na residência por meses, e só voltou para casa quando já não havia mais esperanças.

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Palácio Unzué, residência presidencial argentina até 1955, quando foi destruída pelos militares
Palácio Unzué, residência presidencial argentina até 1955, quando foi destruída pelos militares

Um dos achados do livro de Castro é o diário de Albertelli, que relata as tentativas de ministros e médicos de "aparecerem bem" diante de Perón, ainda que para isso tivessem de mentir sobre a doença, para ele e para a mulher.

Contam os familiares de Albertelli que ele ficou tão traumatizado com a experiência que entrou em depressão, agravada pelo afastamento do cargo que ocupava num hospital público. Apenas 30 anos depois decidiu escrever suas memórias daqueles dias, nos papéis localizados por Castro.

Os documentos recolhidos pelo jornalista mostram ainda que Eva não se deixava abater pela doença. Quanto mais debilitada se sentia, mais queria atuar.

Nos meses em que esteve acamada, chamou para reuniões os dirigentes da CGT e de outros sindicatos, além de setores das Forças Armadas que lhe eram fieis.

Quando um exame revelou a metástase do câncer, Perón mandou chamar um médico norte-americano, um dos mais reconhecidos no assunto naquele tempo.

O doutor George Pack viajou então a Buenos Aires sabendo que aquele era um caso sem possibilidade de cura. Para que Eva não desconfiasse de que seria operada por um profissional estrangeiro, algo que supunham que ela não toleraria, foi anestesiada para os exames e jamais viu o rosto de Pack.

A operação ocorreu no Policlínico de Avellaneda, um hospital que ela mesma inaugurara, em uma área de população majoritariamente pobre, e que tinha instalações bastante modernas para a época.

Para a paciente, foi dito que se tratava de uma cirurgia pequena, para tirar um pólipo. Na verdade, o que se extirpou foi todo o útero e a região afetada.

Era, porém, tarde demais.

As dores aumentavam, e Eva definhava a olhos vistos. Olhava-se no espelho e dizia às enfermeiras: "E pensar que eu quis a vida inteira ser magra, agora veja como estão minhas pernas".

4.jun.1952/Associated Press
No Congresso, bastante magra, Evita assiste à posse de Perón para seu segundo mandato, em 4 de junho de 1952
No Congresso, bastante magra, Evita assiste à posse de Perón para seu segundo mandato, em 4 de junho de 1952

Então veio a ideia da lobotomia.

O doutor Nijensohn conta que, à época, a prática já era usada no tratamento da dor. "Mas também em pessoas em tratamento contra violência, num uso hoje questionado. O caso de Evita pode ter sido um pouco de ambas as coisas", diz.

Este procedimento também teria sido praticado sem a anuência de Eva. Quando acordou da operação, estranhou o movimento de médicos e o aparato cirúrgico no quarto. Até que um deles lhe disse: "Nós tiramos um nervo do seu pescoço, senhora. Agora não vai sentir mais nenhuma dor."

Para convencê-la de que estava melhorando, Perón contratou um modista e pediu que ele fizesse um conjunto de vestidos exclusivos para uma suposta viagem do casal à Europa.

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Após o convívio com Perón, o dr. Poppen lançou o livro
Após o convívio com Perón, o dr. Poppen lançou o livro "Perón, o homem"

Eva, então, animou-se e fez as provas, escolheu as peças para a viagem e recebia todos os dias o seu cabeleireiro. Enquanto isso, o general já entrara em contato com o embalsamador Pedro Ara, encomendando-lhe o trabalho pelo qual acabaria ficando mais famoso.

"Não há nada de errado com o tratamento que recebeu depois do diagnóstico, era o que havia na época. Mas houve muita hesitação em enfatizar a importância do exame quando primeiro foi detectado que poderia haver algo mais sério no colo do útero. Além disso, Perón atuou mal com os médicos, e estes compactuaram em não dar à paciente informações sobre o que ocorria", diz Castro.

Segundo seu relato, Eva apenas soube que tinha câncer em seus últimos dias de vida, por meio de um padre que foi confessá-la.

"Naquela época, a palavra 'câncer' carregava um grande estigma. Eva também teve demasiado pudor em deixar-se examinar. Isso a condenou à morte", conclui o jornalista.

AFP
Soldados perfilados em frente ao Congresso da Argentina durante o velório de Evita Perón, em 1952
Soldados perfilados em frente ao Congresso da Argentina durante o velório de Evita Perón, em 1952