Vida no crack

'Normal' tem significado peculiar na cracolândia

FABIANO MAISONNAVE
EMILIO SANT'ANNA
DE SÃO PAULO

Mãos dadas com as mães, crianças vestidas de azul deixam a creche em fila. Às 17h, funcionários de uma empresa local já estão com o pé na calçada. É quase fim de expediente para boa parte daquelas pessoas na alameda Nothmann, na região da Luz, centro de São Paulo.

A 200 metros, um caminhão da prefeitura se prepara para despejar água de reuso no "fluxo" –quarteirão de outra alameda: a Dino Bueno, tomada por usuários de drogas. Duas vezes por dia é assim, a via precisa ser limpa. Ali, não é começo, meio ou fim de jornada alguma. É apenas uma hora a mais de um dia normal no coração da cracolândia.

São cerca de 250 pessoas àquela altura do dia no quarteirão interditado. Lonas montadas por traficantes tentam ocultar a venda de drogas que todos sabem ser também normal por ali.

"Normal" é adjetivo que assume significado peculiar nesse pedaço da cidade. Quer dizer apenas que apesar da presença constante de viciados, traficantes, agentes de saúde, policiais e guardas civis em uma área de poucos quarteirões, a vida continua correndo –bem ou mal, para todos.

Uma hora antes, na rua Helvétia, quase esquina com o fluxo, a tenda do Braços Abertos –programa da prefeitura– está lotada. Algumas dezenas de frequentadores da região se espalham pelo chão, deitados em frente a uma TV. Nada mais distante da realidade local, acompanham atentos a uma disputa de atletismo da Olimpíada, riem, comem e matam o tempo.

Joel Silva/Folhapress
Traficantes tentam ocultar a venda de drogas com tendas, mas comércio acontece normalmente no meio da rua
Traficantes tentam ocultar a venda de drogas com tendas, mas comércio acontece normalmente no meio da rua

Do lado de fora, abrigos feitos com cobertores se estendem quase até a esquina com a alameda Cleveland, policiais militares fazem uma blitz em frente à escola estadual João Kopke. "Nada demais [está acontencendo]", diz o PM.

A tenda do programa do Estado, o Recomeço, não está tão cheia. Em frente a ela, no entanto, barracas de lona dobram a esquina do fluxo e pegam parte da Helvétia. A três quarteirões, enquanto, um grupo de usuários estende seus cobertores para dormir em frente à Cristolândia, na alameda Barão de Piracicaba, dois jovens se preparam para ir para a faculdade. Ex-usuários de crack, eles moram no andar de cima do galpão ocupado pelo trabalho social da igreja.

Do outro lado da rua, dois homens estão caídos entre os carros. Um idoso passa, olha, ensaia parar, mas resolve seguir em frente. Não há nada de anormal na cena. Diferente mesmo, dizem os moradores do entorno, é o clima e o número de usuários.

Avener Prado/Folhapress
Visão aérea do 'fluxo', na cracolândia, região central de SP
Quarteirão da alameda Dino Bueno, na região central de São Paulo, tomado por lixo e usuários de drogas

"Está mais cheio e mais tenso que o normal", diz a moradora de um edifício a menos de 30 metros do fluxo. A mulher pede para não se identificar por temer represália de traficantes. "Claro que eles leem. Estão sempre com um celular na mão", garante.

Segundo ela, a tensão se estabeleceu logo após a última ação do Estado no local. Na sexta-feira (5), 500 policiais civis e militares se dividiram para fazer prisões na cracolândia e no Cine Marrocos, ocupado pelo MSTS.

Por ali, o principal alvo foi um hotel na esquina da Dino Bueno com o largo Coração de Jesus. No local, símbolos da facção criminosa PCC pichada nas paredes são comuns. "Estão só esperando a próxima [ação da polícia]", afirma a mulher. "Por isso está tão pesado [o clima]."

Aos poucos, no entanto, tudo deve entrar "nos eixos" e voltar a normalidade. Quem vive por ali, garante que é, e sempre foi, assim. Há 40 anos na região, Elizabete Lopes, 62, assistiu "da janela" às mudanças na região. Dona de um bar na Nothmann, acha até que o local já foi pior. "Aqui eles não vêm. Só quando tem algum quebra-pau por lá", diz. "Mas, claro, se tiver que ir para aqueles lados, vou pela avenida [Rio Branco], ando mais, mas não passo por ali."

"Quebra-pau", a que ela se refere, costumam ser as ações da polícia na cracolândia. Dentro do fluxo, sob os olhos do crime organizado, desavenças ocorrem, mas se resolvem ali mesmo, diz a moradora do edifício. Quase em frente ao bar de Bete, um usuário atrás de bitucas de cigarro remexe o cinzeiro colocado na calçada em frente ao Sesc Bom Retiro.

Joel Silva/Folhapress
Consumo de drogas a céu aberto na cracolândia
Consumo de drogas é ainda maior durante a noite na cracolândia, na região central de São Paulo

Do outro lado da rua, o teatro da Porto Seguro ajuda a dar uma cara nova a uma região marcada por um problema que se estende há 20 anos. Seguranças particulares, instalados em cadeiras de ferro, se espalham pelas esquinas.

São "mais para quem é de fora", diz a moradora. "Para quem mora aqui não adianta. Já fui assaltada na frente da polícia e os guardas-civis dizem que não podem encostar nos viciados", reclama. Já são quase 18h. Tudo continua normal na cracolândia.