Introdução

Cracolândia vira alvo de disputas políticas, econômicas e sociais

FABIANO MAISONNAVE
EMILIO SANT'ANNA
DE SÃO PAULO

Pode até ser um dos pontos mais decadentes da cidade, mas a cracolândia é também um dos pedaços mais disputados de São Paulo. Repleta de viciados, traficantes, sujeira e imóveis caindo aos pedaços, a Luz passou de um lugar com escassos serviços atuantes para um espaço de convergência de variados interesses.

Antes, era o mercado imobiliário que mantinha a região em seu radar. Nos últimos anos, novos sujeitos se juntaram. "Em torno da cracolândia são hoje disputados modelos de tratamento sobre álcool e drogas, de conversão religiosa, de ativismo político, de atuação policial e de gestão da cidade", afirma a antropóloga Taniele Rui, autora do livro "Nas Tramas do Crack - Etnografia da Abjeção".

A antropóloga é a coordenadora de um estudo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas sobre o programa municipal de tratamento de usuários de crack. "Isso [disputa política] bem pode gerar um impasse, ou seja, gerar uma situação difícil para a qual não parece haver uma saída favorável."

É nesse contexto que os dois programas para o tratamento de usuários de crack estão inseridos: Recomeço, do Estado, e Braços Abertos, da prefeitura.

Joel Silva/Folhapress
Usuários de drogas acampados em rua no centro de São Paulo
Usuários de drogas acampados em rua no centro de São Paulo

O modelo estadual prioriza a saída do vício com tratamentos que incluem internações. A alternativa municipal está ancorada na redução de danos, incentivando o dependente a reduzir o consumo de drogas e a aumentar a autonomia, sem necessidade de internação, pela oferta de emprego e renda.

Para o psiquiatra e professor da Unifesp Jair Mari, os dois modelos têm pontos altos e baixos. A pior característica, no entanto, é a falta de interação que possibilite potencializar os aspectos positivos de cada um.

Segundo ele, apesar de recentes avanços –como a criação de um comitê gestor– as partes continuam com pouco contato motivadas por posições ideológicas opostas que punem o usuário. O ideal, afirma, seria um modelo que mescle os dois programas, respeitando as características pessoais de cada dependente. "Não há uma receita que vá ser empregada a todos os indivíduos."

Também defensor da integração, o psiquiatra Jair Lourenço Silva, 54, gestor da comunidade terapêutica Estância Primavera, que recebe pacientes do Recomeço, diz que a decisão pelo tipo de tratamento deveria ser entre o usuário e os terapeutas. "Não é o político, que está lá dizendo que só dá verbas pra redução de danos ou só pra abstinência", afirma.

Em sua comunidade terapêutica, o psiquiatra afirma que lança mão tanto de redução de danos quanto de internação com abstinência.

Taniele avalia que a cracolândia materializou o embate sobre políticas de drogas no Brasil. "A polarização criada entre o Braços Abertos, como política de redução de danos, mais atinada à luta antiproibicionista, e o Recomeço, como política proibicionista que aciona o viés da internação, tem produzido efeitos públicos refletidos inclusive na disputa partidária PT x PSDB", afirma a antropóloga.

Isso é tudo que Dartiu Xavier, professor da Unifesp e ex-coordenador de treinamento do Braços Abertos, não gostaria de ver no local. "É uma excrescência e acaba deturpando a condução de um programa, ainda mais se os dois estão no mesmo território", afirma.

Em ano de eleições, a continuidade do programa municipal é defendida por Haddad, que disputa a reeleição, e pela candidata do PSOL, Luiza Erundina. Os outros principais postulantes ao Executivo já declararam ser contrários ao modelo.

Um ponto em comum entre os especialistas é a noção de que é absolutamente necessária a produção de avaliações sobre os programas para que sejam levados à frente.

"Não importa se eu sou de direita, esquerda, comunista ou monarquista, o que importa é ter medidas fidedignas de avaliação para eu sustentar ou não a intervenção", afirma Xavier.

"Em torno da cracolândia são hoje disputados modelos de tratamento sobre álcool e drogas, de conversão religiosa, de ativismo político, de atuação policial e de gestão da cidade"

Taniele Rui, autora do livro "Nas Tramas do Crack - Etnografia da Abjeção"