No sertão de Pernambuco, epicentro do surto, falta até pediatra de plantão
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A SERRA TALHADA (PE)
Há 15 dias, o bebê José Arthur acordou de madrugada com convulsões. Eram 4h20, e ele tremia muito, virava os olhos, o pescoço ficou duro. Começou a babar. A mãe, Daniella, ficou muito nervosa. Nunca tinha visto isso. Correu para levar o menino ao hospital em Serra Talhada, município do sertão pernambucano onde eles vivem.
Chegando lá, não tinha pediatra de plantão. Só tinha um "médico de adulto" e uma enfermeira, que se recusaram a atender "caso de micro". Mãe e bebê esperaram até as 8h. Não apareceu ninguém, e eles voltaram para casa.
José Arthur nasceu com 31 centímetros de perímetro cefálico e as características dos bebês com microcefalia: testa pequena, crânio um pouco afundado, olhar perdido.
O hospital que não tinha pediatra de plantão é o Professor Agamenon Magalhães, designado como centro de referência para atendimento de bebês com microcefalia no Estado de Pernambuco. Atende dez municípios, onde há 47 casos notificados de microcefalia e seis confirmados. O hospital não tem nenhum neuropediatra, profissional mais habilitado para atender bebês com a má-formação.
Cuidar de bebês com microcefalia já é um desafio nos grandes centros. No sertão de Pernambuco, o epicentro da epidemia (1.447 casos notificados, 153 confirmados), é uma batalha.
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Agente de combate ao Aedes Aegypti atua na periferia de Serra Talhada (PE) |
"Da última vez que fomos à pediatra, ela disse: para essas crianças com micro precisa de especialista, não sei nem o que fazer", conta Daniella Alves da Silva Campos, 23, a mãe de José Arthur.
Serra Talhada, município de 84 mil habitantes mais conhecido como a terra natal de Lampião, tem um dos maiores índices de infestação por Aedes aegypti no Estado.
Na casa em que Daniella mora com o marido, o filho, a mãe e o irmão, o calor é intenso e os mosquitos dominam o ambiente. Ninguém usa repelente, só o bebê. Ao lado, há um terreno baldio cheio de lixo e lata com água.
Quando Daniella estava com três meses de gravidez, teve uma gripe forte e dores no corpo, mas não deu muita atenção. Aos sete meses, fez um ultrassom na sua cidade, e o médico disse que o bebê tinha um coágulo na cabeça. Ia ter que tirar da barriga para operar.
Foi a outro médico, que fez vários exames e disse a ela: "Seu filho tem microcefalia. Infelizmente ele vai ser especial ou não vai sobreviver".
No momento em que descobriram que o filho tinha um problema, resolveram fazer todos os exames e consultar médicos "no particular", para ver se isso resolvia.
"A gente gastou o que tinha e o que não tinha", diz o pai de José Arthur, José Rosivaldo Ferraz da Silva, o Nenê, 27. Ele trabalha com mototáxi e cobra R$ 4 por corrida. Em dia muito bom, tira
R$ 50. Em um mês ótimo consegue ganhar um salário mínimo (R$ 880), porque ainda fatura um dinheirinho cantando em bares.
A família foi para o Recife ver um especialista, R$ 450, que pediu exames, R$ 900 em três vezes. Pediram empréstimo para a família de Nenê. Aí o médico disse que o parto tinha que ser cesárea e precisava ser logo, porque o bebê era "especial". Não tinha vaga no hospital público, marcaram no particular, por R$ 3.700. "Corremos atrás de um vereador, que acabou pagando", conta Nenê.
'ARTHUR É LINDO'
Quando José Arthur nasceu, Daniella ficou aliviada. "Tinha visto micro na internet, era muito assustador. Quando ele nasceu, fui logo olhar a cabeça dele. Mas Arthur é lindo. E a cabeça dele nem é tão pequena."
A tomografia, porém, não era das mais animadoras. Dentro do crânio, o menino tinha calcificações (cicatrizes) decorrentes de inflamação, que impedem o desenvolvimento cerebral. E o cérebro estava atrofiado -casos de microcefalia ligada à zika vêm apresentando lesões severas, muito além do perímetro menor da cabeça.
José Arthur chorava muito, e Daniella perguntou à médica: "Por quê? Ele sente muita dor?". A médica disse que não sabia, que ainda estavam estudando, era uma doença nova.
Desde que ele nasceu, a família já foi seis vezes ao Recife para consultas. A viagem é longa -são sete horas. Como eles só têm moto, precisam pedir o carro da secretaria municipal. Saem à meia noite para chegar às 7h.
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José Arthur no banho, momento do dia em que ele fica mais tranquilo |
Quando o governo anunciou no mês de dezembro que haveria um centro para tratar bebês com microcefalia em Serra Talhada, a família comemorou. Mas, por enquanto, nada mudou.
"A estimulação precoce ajuda a desenvolver ao máximo o potencial da criança. Pode ser definitivo, por exemplo, para a criança aprender a segurar a cabeça, a sentar, engatinhar e andar, dependendo da gravidade", disse recentemente o secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Alberto Beltrame, falando sobre a importância de estimular os bebês com microcefalia desde o nascimento.
José Arthur está prestes a completar cinco meses e nem começou a reabilitação.
"Conversei com algumas mães no Recife, os bebês já estão fazendo fisioterapia e alguns, que têm convulsões como o Arthur, já tomam remédio", conta Daniella.
A Unidade de Pronto Atendimento em Serra Talhada ainda não começou a oferecer reabilitação para crianças com microcefalia. A unidade já tem fonoaudióloga e psicóloga, mas ainda não tem terapeuta ocupacional.
"No interior, é muito difícil achar alguns médicos", diz Karla Milene Cantarelli, gerente da 11ª regional de saúde.
Segundo ela, é fato que o hospital tem deficit de pediatras. Os cinco médicos contratados só trabalham de segunda a sexta e, no final de semana, não atendem. Deveriam dar plantão à noite.
"Estamos aguardando a nomeação de novos profissionais de saúde, mas não temos previsão", disse.
"Vai ser muito mais difícil fazer a reabilitação dos bebês longe dos grandes centros; entre um centro de referência ser criado e começar a funcionar tem uma grande distância", afirma Angela Rocha, coordenadora de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Osvaldo Cruz, no Recife.
O combate ao vetor é outro obstáculo. Só Serra Talhada tem 40 mil imóveis com reservatórios de água. Muitos proprietários não liberam a entrada de agentes com inseticida.
"Mulheres da classe mais baixa continuam engravidando, as pessoas não colaboram para acabar com os focos de mosquito, gostaria de dizer que as coisas vão melhorar, mas não sei não", diz Karla, gerente da regional de saúde.
Enquanto não começa a reabilitação, os pais de José Arthur fazem o que podem para estimular o filho.
Quando chega do trabalho, Nenê costuma cantar para ele. O filho não consegue segurar o pescoço e nem apertar as mãos, como outros bebês de cinco meses. Mas o pai garante que ele gosta muito de ouvir "Minha Estrela Perdida", do Gusttavo Lima.
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José Arthur e seus pais em casa |