Famílias

Longos processos e penas em aberto ajudam a prolongar luto de famílias

Um Boeing 737 com problemas de navegação faz um pouso forçado no meio da floresta amazônica. Das 54 pessoas a bordo, 41 são resgatadas com vida do local. Com apego à lembrança desse acidente aéreo, ocorrido com um avião da Varig em 1989, o administrador Humberto Menescal, aos 52 anos, saiu de sua casa com destino a um escritório da Infraero no aeroporto internacional do Galeão, no Rio, na noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006.

Uma hora antes, o avião da Gol em que estava sua mulher, Valeria Cruz, então com 45 anos, havia sido declarado como desaparecido. Bióloga da Fiocruz, Valeria voltava de Manaus, após trabalhos feitos num laboratório público local. "Naquela hora, todos nós [parentes das vítimas] pensávamos que havia a possibilidade de serem encontrados sobreviventes. Só tínhamos a notícia de que o avião estava desaparecido", relembra Humberto Menescal. A busca por informações do que aconteceu no trajeto do voo 1907, contudo, foi muito mais longa e dolorosa do que o administrador poderia imaginar naquela época.

Dez anos após a queda, famílias das vítimas relatam que a espera pelo resgate dos corpos, o processo judicial para condenação dos responsáveis pelo acidente e, mais recentemente, a demora para o cumprimento da pena dos condenados são etapas que alongam ainda mais o luto.

"A gente nunca está preparado para a perda de um ente tão próximo. Mas a forma como o acidente se deu trouxe uma dor e uma dificuldade extra na aceitação do luto", explica Angelita De Marchi, 49, viúva do diretor financeiro Plínio Siqueira, que estava à época com 38 anos.

Avener Prado/Folhapress
Angelita de Marchi, 49, esposa de uma das vítimas do acidente do voo 1907 da Gol
Angelita De Marchi, 49, mulher de uma das vítimas do acidente do voo 1907 da Gol

Ao longo desses dez anos, muitos parentes recorreram à terapia psicológica ou até pararam de trabalhar. Outros entraram em depressão. "A cada nova etapa das investigações, revivíamos toda a dor novamente", conta Angelita.

Para ela, o fato de o acidente ter ocorrido numa área remota, de difícil acesso, foi o primeiro motivo que ajudou a alongar o luto das famílias. "Como é muito distante, há uma dificuldade em materializar a ideia", disse.

O desencontro de informações na época também aumentava a angústia. Humberto lembra que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a um dia do primeiro turno na sua disputa pela reeleição, anunciou que o país estava em luto oficial pelos mortos no acidente. "Isso ocorreu no dia seguinte à queda e antes que a Aeronáutica confirmasse as mortes às famílias. Como era possível estar em luto oficial se não tínhamos a confirmação das mortes?"

Durante a operação de resgate dos corpos, familiares foram ainda submetidos a longas entrevistas para informar dados sobre as vítimas que pudessem auxiliar os trabalhos de identificação. As fases mais longas, no entanto, foram as das investigações. Houve pelo menos quatro grandes apurações oficiais: duas CPIs, um inquérito da Polícia Federal e uma análise da Aeronáutica.

As investigações avançaram e deram origem a processos na Justiça comum e militar. Cinco anos depois, em 2011, as condenações começaram a ocorrer, apesar da orientação da Organização Internacional de Aviação Civil de que as investigações sobre acidentes aéreos não resultem em punições.

"Essa lógica faz sentido quando não fica caracterizado um caso de imperícia e imprudência, como houve com os pilotos do Legacy", declara Angelita. "Ainda que todas as falhas tivessem ocorrido, se os pilotos não tivessem desligado o transponder, o acidente não ocorreria", argumenta Humberto.

Para os familiares ouvidos pela Folha, a sensação é que os pilotos do Legacy carregam a maior culpa pelo acidente, mesmo se comparados aos controladores de voo brasileiros. Por isso, o fato de os pilotos ainda não terem cumprido a pena de serviços sociais é um fator de angústia.

"Essa história precisa fechar. É como uma ferida aberta, que só vai fechar com o cumprimento das penas", diz a psicóloga Neusa Felipetto, 66, mulher do consultor Valdomiro Henrique Machado, que morreu aos 61 anos.

Pedro Ladeira/Folhapress
Neusa Felipetto Machado, 66, viúva de uma das vítimas do acidente do voo 1907 da Gol
Neusa Felipetto Machado, 66, viúva de uma das vítimas do acidente do voo 1907 da Gol

Ao longo do processo, a defesa dos pilotos negou culpa no acidente e atribuiu a colisão entre as duas aeronaves "a sucessivos e primários erros do sistema de controle de tráfego aéreo brasileiro". A defesa diz que o cumprimento da pena dos pilotos "se dará de acordo com os trâmites definidos pelo acordo de cooperação penal entre o Brasil e os Estados Unidos".

RETORNO

Ao analisar o próprio processo de luto, Neusa diz que pretende retornar à fazenda Jarinã, no extremo norte de Mato Grosso, que foi base da operação de resgate dos corpos das vítimas do acidente.

Seu desejo é reencontrar as pessoas que a receberam quando as famílias das vítimas viajaram até o local para acompanhar o resgate dos corpos. "Ter recebido o carinho das pessoas que nos receberam lá também ajuda a amenizar a dor. É muito bom se sentir acolhido e ver que alguém está disposto a tentar diminuir o seu sofrimento."

Gustavo Miranda - 29.set.2007/Agência O Globo
Neusa, à direita, sobrevoa local do acidente durante homenagem feita no primeiro ano do acidente, em 2007
Neusa, à direita, se prepara para sobrevoo no local do acidente durante homenagem feita no primeiro ano do acidente, em 2007
Editoria de Arte/Folhapress
Onde foi acidente Boeing da Gol
Onde foi acidente Boeing da Gol