Uma prisão no alvo de acusações
Em 11 de janeiro de 2002, quando a prisão na base militar americana de Guantánamo (Cuba) foi convertida em centro de detenção para suspeitos capturados nos primeiros meses da ofensiva militar antiterrorismo que marcaria o início deste século, a opinião pública mundial pesava a favor dos EUA.
Quatro meses antes, em setembro, o país fora alvo do maior atentado terrorista ocorrido em seu território, com saldo de quase 3.000 mortos.
O republicano George W. Bush, com pouco tempo de Casa Branca, contava com alta aprovação para conduzir a "Guerra ao Terror" ---jargão que, como "combatente inimigo", foi criado por seu governo para escapar das convenções tradicionais de guerra.Naqueles meses, milhares de homens foram capturados em pontos distintos do Oriente Médio e norte da África, muitas vezes por suspeitas não comprovadas e denúncias frívolas de ligação com a rede terrorista Al Qaeda, responsável pelos atentados.
Levados a centros de detenção em países aliados aos EUA, confessaram e delataram muitas vezes sob tortura, como viria à tona depois. Alguns foram soltos; outros, mortos, mas ao menos 780 acabaram em Guantánamo à espera de acusações formais e julgamento.
Nos anos seguintes, com relatos de tortura na prisão emergindo, a opinião pública virou. A eficácia da "Guerra ao Terror" passou a ser questionada, até que o termo fosse enterrado pelo sucessor de Bush, Barack Obama (que no entanto não aboliu as operações militares). A imprensa e a indústria cultural colocaram o tema no debate cotidiano, produzindo reportagens, livros, filmes, séries.
Mais de 13 anos depois, porém, Guantánamo continua operante, apesar das promessas de Obama de fechá-la. Os 780 detentos tornaram-se 116, com a soltura da maioria sem nenhuma acusação. Dos que restam, quase todos estão em um limbo legal.
A transferência, afinal, tornou-se um dilema jurídico: como estrangeiros presos em situação de combate, não poderiam ser transferidos a prisões americanas, tampouco devolvidos a seu país de origem. Washington tem negociado com países aliados para que recebam esses ex-detentos, na maior parte dos casos nunca acusados de nada, mas sobre os quais paira uma suspeita indelével. Os anos no cárcere também deixaram sua marca, dificultando a readaptação.
A Folha ouviu a história de dois desses homens: Samir Mukbel, um iemenita que chegou a Guantánamo em seu primeiro dia de funcionamento na versão atual e que continua ali, hoje com 37 anos; e o sudanês Sami al-Hajj, 46, câmera da rede de TV Al Jazeera que ficou encarcerado de 2002 a 2008.
As cartas de Mukbel citadas nesta reportagem, enviadas a seus advogados, são inéditas na imprensa mundial.