Cartas de Guantánamo

DETIDO POR ENGANO

'Você estava no lugar errado, na hora errada'

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO

Único jornalista que ficou preso em Guantánamo, o sudanês Sami al-Hajj, 46, não vai descansar enquanto não receber um pedido de desculpas e uma compensação do governo americano. Ele ficou seis anos encarcerado em Guantánamo e foi libertado em 1º de maio de 2008, sem nenhuma acusação formal.

Hajj era cinegrafista da Al Jazeera e foi preso em 15 de dezembro de 2001 no Paquistão, enquanto tentava voltar para o Afeganistão para cobrir os conflitos entre o Taleban e a Aliança do Norte. Autoridades paquistanesas o entregaram para os americanos, que o despacharam para Guantánamo em junho de 2002.

Os militares americanos o acusavam de ser membro da Al Qaeda e ter ligações com jihadistas tchetchenos. E queriam obter informações sobre a Al Jazeera no Afeganistão e uma entrevista feita com Osama bin Laden (mas era outro cinegrafista, com nome parecido, que tinha feito a entrevista).

De acordo com a Anistia Internacional, Hajj foi espancado e torturado na prisão. Em 2003, ele começou uma greve de fome intermitente (com intervalos), que só terminou em 2008, quando ele foi libertado. Chegou ao Sudão pesando 55 quilos (ele tem 1,87 m de altura).

Hoje, Hajj coordena a cobertura de liberdades civis e direitos humanos na Al Jazeera. Abaixo, trechos da entrevista que, do Qatar, ele concedeu à Folha por e-mail, com tradução do árabe para o inglês.

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Folha - O senhor ainda pretende processar o governo americano pelos seis anos em que ficou preso em Guantánamo, sem acusação ou julgamento?

Sami al-Hajj - Sim, quero justiça. Quero ver aqueles que violaram nossos direitos básicos na frente de um juiz. O tempo que perdemos em Guantánamo foram anos roubados de nossas vidas. Causaram problemas para nós, nossas famílias e nossos amigos, além de nossa saúde. O que aconteceu em Guantánamo foi um crime contra a humanidade, e os culpados precisam ser julgados, para impedir que crimes semelhantes aconteçam.

O senhor foi vítima de tortura em Guantánamo? Tem sequelas?

Havia dois tipos de tortura em Guantánamo, direta e psicológica. Sofri tortura direta em Guantánamo: espancamentos, privação de sono por muitas horas e dias, ser aterrorizado com cachorros, entre outras. Mas isso não tinha um grande impacto na minha vida porque, com o passar do tempo, eu esquecia essas coisas horríveis.

Mas sofro até hoje por causa da tortura psicológica. Eles tentaram nos convencer de que éramos "anormais" e responsáveis por assassinatos e terrorismo. Questionavam todos os aspectos da nossa vida, especialmente nossa criação. Também punham em dúvida nossas crenças e religião. Ridicularizavam nossa religião e profanavam o Corão. E também nos impediam de praticar: não podíamos rezar ou fazer jejum.

Prisioneiros africanos como eu eram insultados, chamados de escravos e negros que valem menos que o resto da humanidade. Esse tipo de tortura tem um efeito muito ruim, duradouro, e até hoje sinto as consequências.

O senhor foi vítima de abuso sexual?

Havia abuso sexual em Guantánamo. Não fui estuprado, como alguns foram durante as sessões de interrogatório. Mas eles tiravam toda minha roupa e me humilhavam sexualmente trazendo mulheres que ficavam fazendo coisas obscenas. Eles também me forçavam a assistir a vídeos pornográficos.

O senhor acha que foi preso por engano?

Eu fui capturado por causa de um pedido da inteligência americana às autoridades paquistanesas para capturar um cinegrafista da Al Jazeera chamado Sami al-Maghrebi. Havia esse pedido não porque ele tivesse cometido algum crime, mas porque os americanos queriam pegar, em última instância, Tayseer Allouni, chefe da sucursal da Al Jazeera em Cabul. Ele tinha feito a última entrevista com Osama bin Laden.

Tayseer voltou em segurança para Doha, mas aí eles ficaram atrás de Sami al-Maghrebi, que tinha trabalhado com Tayseer na entrevista. Queriam informações sobre onde havia sido feita a entrevista. Quando esse pedido americano chegou às autoridades paquistanesas, eu fui capturado na província de Quetta, enquanto tentava entrar no Afeganistão para cobrir para a Al Jazeera o colapso do governo do Taleban.

Tenho certeza de que as autoridades paquistanesas sabiam que eu não era a pessoa que os americanos procuravam, mas eles queriam ganhar a recompensa que os EUA estavam oferecendo pela prisão de suspeitos. Então eu fui preso e mandado para os americanos.

Durante o primeiro interrogatório a que fui submetido na base de Bagram, no Afeganistão, o interrogador simplesmente me disse: "Os paquistaneses pegaram o homem errado. Queríamos uma outra pessoa, não você. Mas você agora está aqui porque estava no lugar errado, na hora errada". Aí ele perguntou: "Se nós o soltarmos, o que você vai dizer sobre nós?". Eu disse: "Vou falar sobre o que eu vi: tratamento cruel e desumano contra mim e outros". Ele riu e me disse: "E ainda tem alguns de nós que querem que você seja solto".

Por que o senhor acha que acabou encarcerado por todos aqueles anos?

No começo, acho que o governo americano não queria que o mundo soubesse dos abusos cometidos contra prisioneiros em Bagram, Candahar e outros lugares. Depois, acreditaram que iam me persuadir a ajudá-los. Tentaram me convencer de que eu havia cometido um crime e merecia ser punido, estavam me pressionando para ser informante.

Mas, quando comecei a fazer greve de fome, eles entenderam que eu estava disposto a morrer em vez de ser informante. Então começaram a considerar a minha libertação, sob certas condições. Falaram para eu suspender a greve de fome, para que meu estado de saúde melhorasse e eles pudessem me soltar. Acharam que, ao me submeter a alimentação forçada, eu desistiria da greve.

O advogado Clive Stafford Smith disse que, durante os primeiros 125 interrogatórios, os americanos só lhe perguntavam se a Al Jazeera era ligada à Al Qaeda

A suspeita de que a Al Jazeera seria ligada à Al Qaeda foi descartada há muito tempo. A ex-secretária de Estado Hillary Clinton disse que a Al Jazeera é um veículo de mídia muito sério, ao contrário de alguns nos EUA. E a maior prova de que a suspeita era absurda é que eles permitiram que a Al Jazeera abrisse sucursais nos EUA.

Quanto tempo durou sua greve de fome? Qual era o seu peso na época?

No total, fiquei em greve de fome por 480 dias. Meu peso caiu para 55 kg, a metade de quando cheguei a Guantánamo (110 kg). Imagine, 55 kg em 1,87 m -eu era um esqueleto.

Como é sua vida hoje? O senhor tem pesadelos com Guantánamo?

Claro que os efeitos de Guantánamo duram até hoje. A longa greve de fome que eu fiz e a violenta alimentação forçada me causaram problemas de estômago. Psicologicamente, ficar em isolamento na prisão me tornou menos sociável e mais introvertido. Tornou minha reintegração mais difícil. Isolamento é a norma para mim hoje. Isso tudo dificulta relacionamentos para mim, sou muito desconfiado das pessoas. Guantánamo torna você desconfiado.

E Guantánamo deixou em mim medos. Todas as vezes que vejo homens em roupas militares me sinto mal. Fiquei com muito medo de cachorros, que eram usados para nos assustar em Guantánamo, e barulhos altos me deixam nervoso. Por exemplo, se meu filho bate a porta sem querer, eu fico assustado.

Sua vida com a sua família voltou ao normal?

Minha vida familiar foi afetada, até hoje sinto-me desconectado da família e dos amigos. E o pior é que Guantánamo vai me acompanhar para sempre. O público sempre quer ouvir histórias de Guantánamo, e eu sinto obrigação de contar o que aconteceu. Mas isso me traz de volta memórias horríveis, muitas vezes em detalhes.

E Guantánamo também deixa uma mancha negativa na gente. As pessoas não querem ser associadas a você, por medo dos serviços de segurança. Muitos de meus amigos me abandonaram, não por falta de generosidade, mas por medo. Guantánamo é uma maldição que se recusa a nos abandonar.

O presidente americano, Barack Obama, prometeu em seu primeiro mandato fechar a prisão de Guantánamo, mas ainda não o fez.

Obama enganou o eleitorado americano quando prometeu fechar Guantánamo. Ele nunca levou a julgamento os responsáveis por Guantánamo, embora tenha dito que a prisão foi um grande erro na história americana. Ao não fechar a prisão, Obama revela a incompetência de seu governo para implementar decisões e políticas.

O senhor tem contato com várias pessoas que foram libertadas de Guantánamo. No geral, eles conseguem empregos, têm assistência psicológica?

A maioria dos 750 detentos libertados de Guantánamo, de um total de 900 presos, sofre até hoje [segundo os EUA, 780 foram detidos na base desde 2002, e 645 foram libertados]. Muitos foram mandados de Guantánamo direto para a prisão em um outro país. Outros foram proibidos de viajar e obter documentos que permitem a eles ter uma vida normal. Muitos não puderam se reunir a suas famílias em seus países de origem.

Os iemenitas libertados depois de 10, 14 anos, ainda não conseguiram ver suas famílias ou seu país. Um deles foi mandado para o Casaquistão e morreu sem ter visto seus familiares.