'Fechar Guantánamo é tarefa da humanidade'
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
A advogada Cori Crider, diretora estratégica da ONG britânica Reprieve, já representou 20 detentos de Guantánamo nos últimos oito anos. Atualmente, sua ONG tem dez clientes na prisão americana, todos em limbo jurídico -sem julgamento, sem acusação, sem perspectiva de libertação.
Nascida no Texas, ela faz questão de se desculpar por seu país e pelo ex-presidente George W. Bush (2001-2009), responsável por usar Guantánamo para abrigar presos da "guerra ao terror". Mas Cori é categórica: "Reconheço que esse é um problema que Bush criou. Mas agora Guantánamo é um problema de todos. Então é uma tarefa da humanidade tentar fechar Guantánamo".
E a advogada faz um apelo ao governo brasileiro: "Ficaríamos muito felizes se o Brasil, um líder regional em questões de direitos humanos, acolhesse alguns prisioneiros que já têm autorização para serem libertados."
Abaixo, trechos da entrevista que Crider concedeu por telefone, de Londres.
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Folha - Entre os presos de Guantánamo, 51 obtiveram autorização para serem libertados há anos, mas continuam presos, porque não foram encontrados países para acolhê-los. O que você, como advogada, pode fazer para ajudar essas pessoas?
Cori Crider - Nosso maior desafio, como advogados, é transmitir ao mundo a mensagem de que os presos em Guantánamo são pessoas como nós. Depois de tantos anos, eles foram transformados em espantalhos políticos, que personificam todos os preconceitos das pessoas. Precisamos fazer esses homens contarem como era a vida deles antes de ser roubada pelo nosso governo.
Nesses tours de Guantánamo que o governo promove, ninguém pode falar com os detentos. Eles já nos disseram várias vezes que adorariam ser entrevistados por jornalistas, mas o governo diz que não pode permitir porque isso os exporia à curiosidade pública, violando a Convenção de Genebra. E o resto da Convenção de Genebra, eles não precisam respeitar? O maior desafio é mostrar que eles são pessoas como eu e você. Eles sofreram tortura, mas são pessoas normais, querem casar, ter filhos. Perderam 10, 12 anos de suas vidas.
A política dos EUA envolvendo Guantánamo é tóxica. Para minha vergonha como texana, estamos dispostos a deixar essas pessoas apodrecerem na prisão... um senador que diz ser cristão afirmou isso recentemente [Tom Cotton, republicano de Arkansas, disse: "Se depender de mim, cada uma dessas pessoas pode apodrecer no inferno, mas enquanto não fazem isso, podem apodrecer em Guantánamo"].
As pessoas que receberam autorização para serem libertadas foram avaliadas por quais agências americanas?
Depende do caso, mas muitos foram liberados por uma força-tarefa que reúne Departamento de Defesa, CIA, Departamento de Estado, FBI e outros, que concordaram unanimemente em permitir a libertação desses presos.
Então basicamente essas pessoas estão esperando que um terceiro país aceite acolhê-lasporque elas não podem voltar para o Iêmen, é isso?
Exato. A triste realidade é que, para alguns prisioneiros, seus países de origem entraram em colapso enquanto eles estavam presos, como é o caso da Síria e do Iêmen. Você não pode tirar um preso de Guantánamo e enviá-lo para zonas de guerra na Síria ou Iêmen.
Sou texana, então oficialmente peço desculpas por George W. Bush e todas as cretinices que ele cometeu. Reconheço que esse é um problema que Bush criou. Mas agora Guantánamo é um problema de todos, um problema da humanidade. É só ver como ela é usada como símbolo para recrutar extremistas. Existe alguma prisão que semeie mais ódio que essa? Então é uma tarefa da humanidade tentar fechar Guantánamo.
Você, como advogada, pode tentar convencer outros países a acolher esses detentos?
Nós temos conversado com autoridades de vários países sobre acolhimento de prisioneiros e, ao longo dos anos, várias nações da Europa e outros lugares aceitaram recebê-los. É uma aprendizagem, porque essas pessoas são vítimas de um tipo muito específico de tortura, mas em geral tem sido uma experiência humanitária muito positiva para os homens e os governos.
E estamos falando de números muito pequenos: pedimos que países acolham dois, três prisioneiros, muito menos do que acolhimento de refugiados, por exemplo. São números pequenos, mas aceitar esses prisioneiros têm um simbolismo enorme.
Você já conversou com autoridades brasileiras?
Eu pessoalmente não, mas a Reprieve tem um programa para encorajar países latino-americanos a aceitar prisioneiros. Nós ficaríamos muito felizes se o Brasil, um líder regional em questões de direitos humanos e políticas, acolhesse alguns prisioneiros que já têm autorização para serem libertados.
Você acha que o Brasil seria um país adequado para receber prisioneiros de Guantánamo?
Sim. A Reprieve e outras organizações auxiliam os países que acolhem prisioneiros, e temos um programa patrocinado pela ONU que trabalhou com ex-detentos em 17 países.
Nós ficaríamos honrados em fazer uma parceria com o governo brasileiro se eles estiverem considerando acolher prisioneiros. O Brasil é uma sociedade com muita diversidade, é tolerante, tem uma comunidade muçulmana.
Você acompanha os detentos que agora vivem no Uruguai? Como é a adaptação?
Sim. Óbvio que há desafios, mas o Uruguai é bem menor que o Brasil e provavelmente tem um funcionalismo público menos capacitado. E eles são vítimas de tortura, então é claro que haverá incidentes de saúde mental. Para uma pessoa que sai de Guantánamo depois de 12 anos, primeiro há aquela euforia da liberdade e depois vem a depressão. Mas isso tudo pode ser administrado.
Como você conforta essas pessoas?
A gente passa por altos e baixos com eles. Às vezes eles perdem um parente e nós temos que dar a notícia. Para os prisioneiros que já obtiveram autorização para soltura, mas ainda estão presos, eu digo que se trata muito mais de política do que de leis. E digo que a ajuda deles é essencial, para mostrarmos que eles são pessoas comuns.
Há detentos fazendo greve de fome atualmente?
Acredito que sim, mas o Departamento de Defesa não nos fornece números claros. Em 2013, quando houve a greve de fome maciça, eles divulgavam, mas aí pararam, dizendo que não iriam ajudar os detentos na guerra de propaganda deles. Se você ligar para o Departamento de Defesa agora e perguntar quantos detentos estão em greve de fome, eles não vão te falar.
Você acha que eles estão sendo submetidos a alimentação forçada?
Eu não acho, eu sei. Um dos meus clientes, que está pesando 45 quilos, me contou. Deve haver uns 10, 12 prisioneiros em greve de fome, sendo alimentados à força.
E os 55 prisioneiros que ainda não receberam autorização para serem soltos, o que acontece com eles?
O governo americano lançou mais um "periodic review board", que é o equivalente em Guantánamo a uma audiência de liberdade condicional. Essas audiências estão liberando algumas pessoas, mas o ritmo é muito lento.
Mas alguns não foram liberados porque são considerados culpados, não?
Algumas pessoas estão nessa condição por causa do que aconteceu com elas nas prisões secretas da CIA [as confissões foram obtidas por meio de tortura e não são aceitas]. Mas também não estou dizendo que todo mundo em Guantánamo é madre Teresa. É só que a vasta maioria das pessoas não é perigosa e não deveria ter passado 12 anos presa.
Algumas pessoas argumentam que é perigoso soltar os prisioneiros de Guantánamo, porque a taxa de reincidência é muito alta.
O Departamento de Defesa uma vez divulgou números de 17% de reincidência, mas eu acho que estão totalmente inflados. Eles nunca divulgam nomes. Trabalhei com vários detentos que foram libertados e eles saíram de Guantánamo e foram comprar um gato, casar, trabalhar na fábrica da Danone. Esses números vêm de uma parte do governo americano que se opõe ferrenhamente ao fechamento de Guantánamo. Alguns detentos foram soltos e fizeram coisas ruins, mas é uma minoria, e bem menor que a reincidência de prisões normais.
A maioria dos detentos soltos consegue voltar a ter uma vida normal?
É um processo. Demora. Nós não podemos nem imaginar o que essas pessoas passaram. Mas aos poucos eles melhoram. Os uigures que foram para Bermuda estão cortando grama em campos de golfe. As pessoas fazem o que podem para superar.
Em seu primeiro mandato, Obama prometeu fechar Guantánamo. Por que você acha que ele não conseguiu?
Acho que ele não quis gastar capital político. Não subestimo a dificuldade de ser presidente e lidar com diferentes prioridades. Mas acho que ele não está tentando tanto quanto deveria.