Cartas de Guantánamo

CARTAS DO CÁRCERE

'Isso é justo? Isso é liberdade?'

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO

"Conversei por telefone com a minha família dez dias atrás. Foi uma ligação muito triste. Tem guerra na minha cidade."

Da última vez que falou com seus advogados por telefone, na semana passada, Samir Mukbel, 37, mostrou-se muito preocupado com sua família. O vilarejo iemenita onde vivem seus pais, já idosos, é alvo constante de bombardeios.

Mukbel é um dos 43 cidadãos do Iêmen que continuam presos em Guantánamo há anos, apesar de já terem sido "liberados". Ele foi considerado de "baixo risco" por várias autoridades dos EUA, obteve autorização para ser libertado, mas não pode ser solto, porque não tem para onde ir. Os prisioneiros iemenitas não são mandados de volta para o Iêmen por causa da guerra civil. E é difícil convencer outros países a receber esses detentos.

Mukbel chegou a Guantánamo no dia em que a prisão foi "inaugurada" --11 de janeiro de 2002. Ficou alojado no famigerado Campo X-Ray", eternizado pelas cenas de prisioneiros encapuzados e vestidos com uniforme laranja, dentro de gaiolas, ameaçados por cachorros. O Campo X-Ray virou símbolo dos abusos contra os prisioneiros.

Segundo o governo americano, Mukbel era guarda-costas do terrorista Osama bin Laden e participou dos confrontos nas cavernas de Tora Bora.

Ele nega. E nunca foi acusado formalmente de nada.

Em janeiro de 2010, uma força tarefa do governo americano autorizou Mukbel a voltar para seu país, caso as condições lá melhorem, ou ser transferido para um terceiro país.

"Por que o governo dos EUA não consegue achar países para acolher as pessoas que já têm autorização para serem soltas, e a maioria delas é do Iêmen? Será porque o Iêmen é um país pobre e ninguém liga para os iemenitas? Faz sentido nós ficarmos no campo 6 e campo 5 apesar de termos autorização para sermos libertados? Isso é justo? Isso é liberdade?", escreveu Mukbel em carta a seus advogados da ONG Reprieve, reproduzida abaixo.

Mukbel só consegue falar com sua família uma vez a cada três meses. Seus familiares moram em uma área muito instável do Iêmen, com muitos bombardeios, e é difícil chegarem até o escritório do Crescente Vermelho para fazer as ligações. Fora esse, seu único contato com o mundo exterior são cartas e ligações para seus advogados, quando autorizadas.

Ele começou a trabalhar aos 12 anos em uma fábrica de plásticos no Iêmen. Aos 23, ainda trabalhava na mesma fábrica, ganhando US$ 50. Resolveu tentar a vida no Afeganistão onde, conforme garantia um amigo seu, havia bastante trabalho.

Chegando lá, não achou emprego. Logo depois, os EUA invadiram o país, na esteira dos atentados do 11 de Setembro. Mukbel tentou fugir para o Paquistão, foi capturado, e agentes paquistaneses o entregaram para os americanos.

Em Guantánamo, depois de mais de dez anos sem nenhuma acusação formal ou julgamento, Mukbel entrou em greve de fome. Em 2013, publicou um artigo em "The New York Times", ditado por telefone para sua advogada, sobre a alimentação forçada dos prisioneiros em Guantánamo.

Seu sonho é casar, ter filhos e trabalhar no campo.

Abaixo, reprodução das cartas que Mukbel enviou este ano a seus advogados, da ONG britânica Reprieve:

*

ABRIL

Saudações

Vocês sabem dos problemas de guerra civil no Iêmen e do que está acontecendo na minha cidade, Taiz. Estou muito preocupado e não consigo ter notícias da minha família. Ouvi no rádio que há muitos conflitos ao redor de Taiz e que as pessoas estão em condições muito ruins. Cortaram a água e a eletricidade, o preço da comida subiu muito.

24 DE ABRIL

Saudações

Espero que todos vocês da organização estejam bem. Eu agradeço a vocês pelos presentes que chegaram aqui à prisão. O pacote vinha com xampu, pasta de dente, escova de dente e um sabonete. Seria melhor se a administração da prisão nos desse essas coisas, em vez de deixar os advogados nessa posição constrangedora.

Como vocês sabem, fui aprovado para libertação por quatro comitês de segurança [ele se refere ao processo de revisão da força-tarefa interagências, na realidade seis agências governamentais], como foram muitos outros detentos.

Muitos já foram acolhidos por outros países, e eu deveria ter sido um deles. Os que foram acolhidos estão livres agora, vivendo em suas próprias casas, andando por aí como quiserem, divertindo-se.

Já eu e muitos outros que receberam autorização para serem libertados há anos estamos vivendo uma vida horrível de prisioneiros sob regras muito rígidas, tratamento impróprio e privados de muitas coisas. Nós somos prisioneiros.

O governo americano supostamente deveria tratar essas pessoas de forma humana, já que muitos já deveriam ter saído desta prisão há anos.

Por que o governo dos EUA não consegue achar países para acolher as pessoas que receberam autorização para serem soltas, e a maioria delas é do Iêmen? Será porque o Iêmen é um país pobre e ninguém liga para os iemenitas? Faz sentido nós ficarmos no campo 6 e campo 5 apesar de termos autorização para sermos libertados? Isso é justo? Isso é liberdade?

CARTA NÚMERO 42

Data: 15/5/2015 Número de páginas: um

Para a advogada Courtney Saudações

Espero uma ligação sua, o quanto antes, porque estou muito preocupado com a minha família. As coisas que estão acontecendo na minha cidade são muito ruins. Eu vi os escombros na minha cidade. Por isso eu queria que vocês ligassem para minha família para saber deles. Aqui vão algumas perguntas que gostaria que vocês fizessem a eles:

1. [Confirmar que] ninguém se feriu. Alguém se feriu? 2. As bombas e a troca de tiros estão acontecendo todos os dias no meu bairro? 3. Nossa casa foi atingida? 4. Como eles conseguem comida? Facilmente ou com dificuldade? 5. Vocês pensam em se mudar daí? Para onde vocês iriam? 6. Eu quero notícias sobre vocês. Não liguem para mim. Eu preciso saber de vocês. 7. Minhas saudações para minha mãe, meu pai e toda a minha família. 8. Eu sei que vocês não estão muito bem. Não os esqueci em minhas orações. 9. Eu peço que vocês pensem em Deus. Sejam pacientes e não saiam de casa a não ser que seja necessário.

Por fim, Courtney, espero receber sua ligação rapidamente...