Patrimônio

Índios celebram Quarup e protestam contra Agenda Brasil

Xingu Eleonora de Lucena/Rodolfo Lucena

ELEONORA DE LUCENA
RODOLFO LUCENA
ENVIADOS ESPECIAIS AO ALTO XINGU

Os índios da região do Xingu, no coração geográfico do Brasil, estão em festa. É tempo de celebrar mortos e comemorar a vida com o Quarup. Neste domingo (23), encaminham pedido para que o ritual seja reconhecido como patrimônio cultural nacional.

Ao mesmo tempo, índios de todo o país estão apreensivos e revoltados. Protestam contra a Agenda Brasil, encaminhada ao governo pelo senador Renan Calheiros. Consideram que as propostas para revisão na regulação de áreas indígenas, mineração e licenciamento ambiental atendem a interesses privados de ruralistas, são um retrocesso e colocam em xeque direitos conquistados.

Em manifesto na semana passada, 150 lideranças indígenas do país afirmaram que as medidas listadas por Calheiros "só irão agravar as crises hídrica, climática e política. Ou seja, além das catástrofes ambientais, implicarão o aumento dos conflitos e das violências contra os nossos povos, que não vão permitir que continuem a invasão, o esbulho e a destruição de seus territórios".

Os índios condenam quatro pontos da Agenda Brasil. Um dos centrais é o que propõe "revisão dos marcos jurídicos que regulam as áreas indígenas, como forma de compatibilizá-las com as atividades produtivas". Identificam no texto genérico mais um ataque do Legislativo, onde tramita a polêmica PEC 215, que confere ao Congresso a prerrogativa de demarcação de terras indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas, atribuições hoje do Executivo.

As lideranças das tribos também protestam contra os itens da agenda que pedem "revisão e implementação de marco jurídico no setor de mineração", "revisão da legislação de licenciamentos de investimento na zona costeira, áreas naturais, e cidades históricas" e agilidade no "licenciamento ambiental para obras estruturantes do PAC e dos programas de concessão, com prazos máximos para emissão de licenças".

Neste final de semana, quando assistirá ao Quarup da aldeia Kuikuro, no Xingu, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, deve receber a solicitação oficial das etnias da região para que a cerimônia ganhe o título de patrimônio cultural. Na semana passada, ele ouviu protestos das lideranças indígenas.

"Os povos indígenas sofrem o maior ataque sistemático aos seus direitos. Direitos consagrados na Constituição e nos tratados internacionais. Com a chamada Agenda Brasil, querem utilizar nossas terras como moeda de troca para a suposta superação da crise. Isso não iremos admitir".

As palavras foram ditas por Sonia Guajajara, 41, da coordenação executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), entidade que assina o manifesto. A fala ocorreu no encerramento do 2º Fórum Nacional de Políticas Indígenas, no Sesc Belenzinho, em São Paulo, no último dia 15.

Na sala lotada de indígenas, o histórico líder caiapó Raoni Metuktire, 85, também demonstrou preocupação: "Índio precisa de terra para garantir a continuidade da cultura, das tradições. É preciso respeitar as áreas demarcadas. Somos autoridade também, precisamos ser ouvidos e respeitados", declarou.

Em seu discurso, Ferreira, 66, respondeu: "Não podemos permitir que a barbárie, o que há de pior na sociedade, nos represente junto a vocês, tomando as terras de vocês, agredindo as mulheres de vocês, massacrando aldeias, ameaçando de morte as lideranças. Não é possível. Estão de olho nos conhecimentos que vocês têm sobre a floresta, nos minerais que as terras de vocês por ventura tenham."

Segundo o ministro, "é preciso que o governo tenha a coragem de representar o interesse público e a complexidade de nossa democracia. É inadmissível que um governo popular democrático não assuma o compromisso com os povos indígenas".

Ferreira foi aplaudido quando se dispôs a percorrer os ministérios com as lideranças para tratar de suas demandas. "Vamos ao Ministério da Justiça ver as dificuldades para a demarcação de terras. Vamos ao Ministério da Saúde; o relato que os amigos indígenas fazem é de que pode melhorar muito".

A representante da Funai no evento não se pronunciou.

Na aldeia kamaiurá, no Alto Xingu, a preservação da terra, da cultura, do ambiente e a conquista por melhores condições de saúde estão no centro das prioridades do grupo.

Semanas antes da divulgação da Agenda Brasil, o cacique Kotok falou de sua preocupação com a renovação da demarcação do parque, dos problemas de saúde e dos efeitos do avanço do agronegócio na região.

"O desmatamento está se aproximando, a queimada está chegando na reserva. Jogam veneno na soja plantada e o veneno está no rio, afeta nossa saúde, dá diarreia", declarou.

Kotok, 57, foi o anfitrião da cerimônia do Quarup em homenagem a seu pai, o cacique e pajé Tacumã (1932-2014), figura histórica na luta pela criação do parque do Xingu. Cerca de mil pessoas participaram do ritual fúnebre e da festa ocorrida na última semana de julho.

Com peixe e beiju, os indígenas choraram, dançaram e tocaram flautas. A reportagem acompanhou a preparação da festa e o cotidiano da aldeia. Entrevistou lideranças e especialistas, que falaram sobre as dificuldades, as reivindicações e os projetos dos índios.

O ápice do evento foi no domingo (26.7), quando representantes de várias tribos se enfrentaram na huka huka, luta tradicional, de ritmo rápido e feroz.

O embate mais amplo dos indígenas tem outra dinâmica, especialmente a partir da Agenda Brasil. "O cenário não é bom. A certeza é de que continuaremos a fazer o enfrentamento e a resistência", diz a líder Sonia Guajajara.