Luta

Huka huka levanta poeira na aldeia

Xingu Eleonora de Lucena/Rodolfo Lucena

DOS ENVIADOS ESPECIAIS AO XINGU

Rápida como um raio, a mão esquerda dispara. Passa por trás da coxa direita do rival no instante exato em que a mão direita penetra por baixo do braço esquerdo do adversário. No mesmo movimento, aproveitando o ímpeto agressivo, os braços sobem, erguem o corpo do inimigo até a altura dos ombros e então o jogam no chão. Há um som surdo, que levanta poeira e provoca gritos e cantos na plateia.

É tudo num átimo, uma sequência de movimentos precisos, perfeitos, executada em menos tempo do que os segundos que você levou para ler este texto até aqui. Trata-se do golpe mais plástico e dramático da huka huka, tradicional luta dos índios do Xingu; na cerimônia do Quarup, ela marca o início do fim da festa.

Cheia de regras e rituais, tem lugar certo na cerimônia. Acontece na manhã de domingo, depois que os mortos já foram chorados, cantados e homenageados ao longo de toda a noite. Sob o sol, os cânticos surdos dos lutadores, os corpos se movimentando na praça da aldeia e os gritos de vitória parecem dizer que é hora de seguir com a vida.

Os lutadores passaram a noite acordados para evitar sonhos "feios", a visita de espíritos maus que pudessem lhes tirar a força. Comeram, conversaram, alguns cantaram, houve quem jogasse provocações aos adversários.

Desde o início da manhã, a tensão vem aumentando. Chegam os convidados, que se colocam em círculo na praça central da aldeia. Há danças rituais, sempre marcadas por batidas do pé direito no chão.

Os lutadores "da casa" ficam num grupo compacto próximo à área de reuniões; de frente para eles, a cerca de 30 metros, se acotovelam os campeões das tribos rivais. Faz-se silêncio enquanto o mestre de cerimônias kamaruiá chama os melhores lutadores de seu time.

Cada um vai para o centro do campo de batalha e se agacham, mãos e joelhos apoiados no chão, encarando os adversários. Vai começar o primeiro round dos combates do dia, que são divididos em três etapas: as lutas dos grandes campeões das diversas etnias, uma espécie de treinão geral, e uma segunda série de lutas, novamente envolvendo os atletas mais importantes. Definidos os enfrentamentos, a primeira dupla se posiciona na área central.

Os adversários, cada um com pintura mais elaborada que o outro, vestindo cinturão colorido e proteções especiais nos joelhos e canelas, se encaram e começam a dar pulinhos laterais, girando e cantando "uhúhúhú". Os braços estão em posição de combate: um aberto à frente, fazendo proteção e ampliando o corpo do lutador, outro dobrado ao lado do corpo, pronto para dar o bote no rival.

Enquanto giram e fazem seu cantochão vibrante, os lutadores se agacham, "diminuindo" o corpo para dar menos área para o adversário pegar –nesse momento, em que as pernas precisam estar protegidas ao máximo, a postura dos atletas lembra a pose inicial dos lutadores de sumô.

O primeiro enlace dos combatentes acontece apenas quando os dois já estão de joelhos. Às vezes, as mãos se entrelaçam em aperto que pode ser decisivo: quem entrar mal pode ter os dedos quebrados e dar adeus à luta.

O objetivo da huka huka é derrubar o adversário, jogar o rival no chão. Isso, porém, é raro: se um atleta consegue passar a mão por trás da perna do rival, este costuma desistir antes do golpe final. É como o enxadrista que tomba o rei no meio do jogo pois sabe que o resultado já está definido.

O que não significa que não haja risco nos enfrentamentos. Nas lutas do Quarup de Tacumã, um campeão caiu de frente, bateu com a testa no chão, teve de levar alguns pontos.

Outro lutador inspirou cuidados ao médico cubano que atende aos kamayurás pelo programa Mais Médicos. O atleta foi deixado estirado no chão pelo rival e não conseguiu sair do centro da praça por suas próprias forças, tendo de ser carregado pela família e companheiros de tribo.

"Faltou gás", dignostica o doutor Pedro Sarduy, cujo físico lembra mais o de um lutador gigante do que o de um médico. Praticante de esportes, diz que o atleta derrotado não teve fôlego para a luta, que durou mais do que o comum. "Eles têm muita técnica, mas não têm preparo físico, não têm resistência", avalia.

As lutas, de fato, são muito rápidas. São raras as que passam dos 60 segundos –a que quase provocou o desmaio do lutador atendido pelo médico teve cerca de dois minutos.

O desenvolvimento aeróbico -com corridas ou pulando corda-não faz parte da preparação comum de um lutador de huka huka. Também não fazem trabalhos para o ganho de força muscular específica. Um índio comum se torna lutador de huka huka... lutando huka huka.

Em geral, a decisão é tomada na adolescência, quando o menino -ou a menina, pois elas também podem ser lutadoras-passa um período no recluso, ficando até anos fechado na oca, com contato apenas com familiares e saindo somente para algumas atividades específicas, como o treino de huka huka.

A preparação do adolescente no recluso envolve alimentação e práticas centenárias para ganho de força, como arranhar o corpo com um equipamento especial, uso de unguentos especiais preparados pelo pajé e consumo de chás de ervas adequadas para "limpar" o corpo.

A parte mais dolorosa é rasgar a pele, especialmente dos braços e das pernas, mas também das costas e da área dos rins -apontada como a que sofre mais. O equipamento usado é o jajap, que a maioria chama simplesmente de "ranhadeira".

Ela não tem nada de simples. Trata-se de um pequeno triângulo de cabaça (cuia) em que é incrustada uma fieira de afiadíssimos dentes de peixe-cachorro. Há especialistas na construção e uso do equipamento, que sabem exatamente os dentes que devem ser usados -incisivos laterais–, como posicioná-los e como prendê-los na base.

O construtor de ranhadeiras em geral também cumpre a função de ranhador -ainda que outros possam executar esse trabalho, que também exige especialização. O ranhador define as áreas que serão lanhadas e ajuda na primeira lavagem das feridas. A próxima etapa é a passagem de ardidos unguentos nas áreas escarificadas -ficar firme, sem fazer cara de dor nem lançar gemidos, é uma das primeiras demonstrações de força e determinação do candidato a lutador.

A preparação do atleta envolve ainda o fortalecimento psicológico. Pais e avós contam histórias, dão orientações para a vida, falam sobre as tradições da tribo; às vezes, desafiam o ânimo do adolescente para conferir se a decisão está firme mesmo. Os treinos de luta são feitos na hora mais quente do dia.

"Eu vou sair sozinho, vou lá no centro e bato quatro vezes com a perna no chão. Faz aquele barulho, vem alguém para combater", conta Uerê, um dos principais lutadores dos kamaruiá –neste Quarup, porém, ele não luta nem se pinta porque está pranteando dois parentes mortos há poucos meses.

Os jovens lutam, ouvem conselhos de combatentes mais experientes e lutam de novo e mais uma vez. Agilidade e força ganham nas lides do dia a dia, nos trabalhos na roça, na construção de casas -é preciso cortar árvores e carregar toras enormes que serão usadas como pilares nas ocas.

Tudo isso e mais um pouco esteve envolvido na formação de Tacumã, um jovem de 19 anos filho da pajé Mapulu, neto do cacique homenageado no Quarup dos kamaruiá.

"Sou lutador, estou me tornando lutador. Vim ganhando confiança da comunidade e estou agora em busca de vitória", diz ele em voz baixa, demonstrando uma certa timidez às vésperas do primeiro grande dia de sua vida.

Descansando em uma rede na oca da família, ele fala sobre o que espera na manhã seguinte: "Desde que comecei a lutar, vim só pensando nessa festa. Falta eu ganhar na luta [do Quarup] para me tornar um campeão".

Em outra oca, um campeão sofre. Mayaru, filho do cacique Kotok e já escolhido como sucessor do pai na condução dos negócios da tribo, teve uma lesão no braço esquerdo. Tenta erguer a mão e interrompe o movimento por causa da dor; a ideia de não poder lutar na manhã seguinte talvez seja ainda mais dolorida.

Já ouviu a pajé e passou pelas orientações de um tio; agora está nas mãos de um médico e um fisioterapeuta que chegaram à aldeia apenas para acompanhar o Quarup. Fazem manobras com o braço esquerdo de Mayaru, orientam o campeão para que ele execute alguns movimentos, calculam a dor, mostram exercícios.

Depois de alguns minutos, o atleta já diz estar se sentindo melhor. Houve novas recomendações dos médicos e a promessa de que estará em boas condições para enfrentar pelo menos a primeira luta. "Depois, a gente não garante. Aí é com você", brincam os especialistas.

O fato é que, na hora da luta, ninguém garante nada. Cada atleta se joga com o que tem de força e técnica, reúne o que conseguiu de experiência e gana e manda ver, enquanto a massa gira em torno dos lutadores.

O primeiro combate já é o decisivo: o melhor atleta dos kamaiurá enfrenta o campeão dos visitantes. Quem ganhar leva a glória, que está conquistada, mas não garantida: os demais combates da primeira etapa e as lutas do segundo turno podem eventualmente virar o resultado.

No intervalo, acontece uma confusão. Agora sem os mestres de cerimônias que selecionam os lutadores, atletas se apresentam no centro da praça, desafiam rivais, chamam outros para a briga. Várias lutas se desenrolam ao mesmo tempo, até mesmo um combate em que participa um convidado, Richard -apesar do nome, é mexicano. Ele é tratado com gentileza, mais não dura mais de 15 segundos em cada luta em que se meteu.

"Se fosse de verdade, eu podia estar morto", comentou ele depois, elogiando a força e a técnica de luta dos indígenas. Gente bem mais forte e preparada que o ativista mexicano já sentiu na pele o poder dos lutadores de huka huka. Em 2012, o então ídolo do MMA Anderson Silva foi derrotado várias vezes durante um dia de lutas para divulgação de uma marca de energético.

Chegou de helicóptero à aldeia kamaruiá, ouviu ensinamentos sobre as regras da disputa e foi para o centro da praça de areia. "Puxei ele, segurei na perna e levantei ele, queria levantar ele e jogar no chão, mas meu primo disse para eu parar", lembra Uerê, um dos kamauyrá que derrotou o Spider. "Durou 15 segundos", diz ele, que é 20 centímetros mais baixo que o ex-campeão de MMA, hoje no limbo, condenado por uso de susbtância dopante.

Na época, ainda longe desse inferno astral, Silva encarou tudo como brincadeira. Além de aprender golpes de huka huka, ensinou aos índios alguns segredos de sua especialidade. Lutando pelas regras do MMA, conseguiu vencer alguns embates. E saiu impressionado com as técnicas usadas pelos índios.

Hoje, porém, os kamaiurá não querem saber de elogios nem de exibições, mas sim de vitória.

"Na primeira luta das primeiras lutas, ganhou meu cunhado, que é nosso principal lutador, que é muito jovem, mas já está bem maduro, ganhou", conta Marcelo Kamaiurá, genro de Kotok, que atendeu a imprensa durante a cerimônia.

Ele se referia ao tímido Tacumã, que conseguiu enfim se concentrar para aplicar o golpe com que sonhara. "Foi uma luta limpa e isso nos deu a vitória. O resto foi tudo empate, aquela primeira já decretou que somos vencedores. A primeira decide, se não tiver outras derrotas", explica Marcelo.

As derrotas podem eventualmente ocorrer ainda no primeiro turno ou no segundo turno, quando há mudanças no emparceiramento, o primeiro de uma chave luta com o segundo de outra e assim por diante, como acontece em algumas semifinais de campeonatos de futebol. No interregno há os tais combates aparentemente sem ordem nem função.

No meio da confusão, mães de lutadores se aproximam dos atletas, ficam gritando com seus filhos, lançando o que parecem ser xingamentos. E são mesmo, segundo conta Marcelo: "Elas falam algumas palavras, como `esse meu rapaz aí não luta, não treina, pode derrubar ele porque ele não treina, não toma banho cedo`. São coisas que elas vão citando, é para estimular".

Trata-se de uma espécie de psicologia reversa, expectativa de que o mau olhado funcione ao contrário. (Um parênteses: mães e tias mães também fazem isso com as jovens adolescentes que saem do recluso e são mostradas à tribo durante o Quarup. Seguem atrás da moça, na cerimônia de apresentação, gritando coisas como "essa aí nunca vai casar, essa aí vai ter uma sogra ruim" e outras predições nada benfazejas.)

Por força da psicologia, de exercícios ou de uma injeção contra a dor que recebeu na manhã de domingo, Mayaru, o chefe lesionado, conseguiu ir à luta. Não apenas um combate, como prometeram os médicos, mas cinco. Com três vitórias e dois empates, terminou o domingo invicto e feliz da vida.

Mais feliz do que ele, talvez, só a pajé Mapulu, que caminhava pela praça e parava quem encontrasse para anunciar: "Meu filho ganhou a luta, meu filho é campeão!".(ELEONORA DE LUCENA e RODOLFO LUCENA)