Passado

Supervalorização de tecnologias complexas quebra a saúde, diz historiador

O professor André Mota, 46, em sala anexa ao Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP Eduardo Knapp/Folhapress

PHILIPPE SCERB
DE SÃO PAULO

Diretor do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP, André Mota, 46, é um crítico da visão que, segundo ele, predomina quando se fala em evolução na saúde.

O historiador argumenta que o contexto no qual o desenvolvimento da medicina ocorre é ignorado, e que avanços são entendidos como fruto das ideias de "seres iluminados". Ao descolar a evolução técnica da sociedade em que ela acontece, afirma o professor, o "discurso dominante" ignora a identidade política da medicina.

No século 19, exemplifica, imperava a concepção de "corpo-máquina", que deveria ser reparado para a reprodução do capital, antes da emergência do "corpo-informação", no século 20.

Mota, que tem pós-doutorado em medicina, divide as tecnologias médicas entre duras e leves e prega que as últimas devem ser mais valorizadas.

Na avaliação dele, a supervalorização de equipamentos e exames mais sofisticados prejudica o paciente e o funcionamento do sistema público de saúde. Para o professor, o ponto mais positivo do programa Mais Médicos é o reconhecimento da atenção primária como uma tecnologia.

Folha - Como olhar a evolução da tecnologia na medicina?
André Mota - Fazemos uma divisão das tecnologias em duas linhas fundamentais. Aquelas que chamamos de tecnologias duras -os equipamentos, os exames e os remédios de alta complexidade- e as leves, que muita gente despreza, onde está a atenção primária -o cuidado em saúde, a promoção, a prevenção e o acolhimento dos pacientes.
São estratégias também tecnológicas. Temos as UBS (Unidades Básicas de Saúde) que conseguem, só com tecnologias leves, dar conta da maioria dos casos que chega. O erro é reforçar a ideia de que há mais tecnologia nas duras do que nas leves. Não há hierarquias.

É problemático falar de avanços tecnológicos na medicina?
Não necessariamente. Mas esse tipo de narrativa tende a difundir a ideia de que a tecnologia médica é fruto apenas de descobertas científicas que vão se dando, quando na verdade a história da medicina revela que essas invenções são frutos de contextos. Passa-se a impressão de seres iluminados que vão criando e descobrindo, um atrás do outro, numa linha que seria reta e progressiva. É uma visão deturpada.

Como tecnologias duras e leves interagem?
O médico deverá saber chegar ao êxito técnico por meio dos conhecimentos biomédicos que possui. Mas só o êxito técnico não resulta necessariamente na cura. Ele vai precisar também daquilo que chamamos de sucesso prático: reconhecer no paciente coisas que o levaram a ficar daquela maneira.
É fundamental compreender questões de gênero, raciais, sociais, de escolaridade, geracionais; são elementos que foram vistos de uma maneira um pouco etérea, mas que hoje o campo médico deve trazer para a discussão da tecnologia.

É difícil, portanto, inserir as tecnologias leves em uma linha cronológica de inovações.
Exatamente. As inovações duras são facilmente localizáveis no tempo e no espaço, ao passo que outras parecem fruto de um processo mais longo. São todas, contudo, contextuais. Essa questão leva a uma visão simplificada quando olhamos para uma lista de invenções. Parece que foi uma coisa atrás da outra. E não foi.

Essa simplificação responde a uma obsessão cientificista?
Sim. É como se a ciência agisse sozinha. Só posso falar de corpo individual quando surge a burguesia. Na Idade Média, não existia.
No século 19 o que prevalece é a ideia do "corpo-máquina", pois demandava-se tecnologias de reparação do corpo para a reprodução do capital. Isso faz sentido em uma sociedade na qual o capitalismo se consolida com a industrialização e a necessidade de força de trabalho.
A partir do século 20, entramos na medicina tecnológica, pois do "corpo-máquina" passamos ao "corpo-informação", com a explicação do DNA, na década de 50. Aquele "corpo-máquina" é diluído na informação e na imagem e chega ao que somos hoje, como nessa discussão do genoma.

Mas há marcos das tecnologias leves também.
Sim. No fim do século 19, a urbanização e a industrialização promovem epidemias, e isso já é colocado na forma da epidemiologia. Com a 2ª Guerra, emerge nova forma de pensar a medicina. Surge o termo "medicina preventiva", com a ideia de que é possível prevenir doenças por meio de ações no meio social e no indivíduo pela educação, pelo saneamento básico.
No final dos anos 70 emerge a ideia de promoção da saúde. Ela incorpora tudo o que a linha preventiva trouxe a um conjunto como a iluminação na rua em que a pessoa mora, as condições dos parques no entorno de sua casa, o acesso à boa educação, a presença de uma igreja como forma de relação com a comunidade e a possibilidade de ser reconhecido no gênero, na raça e nas questões ligadas à sexualidade.

Há alguma incompatibilidade entre tecnologias duras e leves, considerando que os recursos são escassos?
Sim, esse é o grande debate no Brasil. Quando o indivíduo diz que não está sendo atendido, qual é o motivo? Quase sempre, falta de unidade básica de saúde. Se você olhar o problema dele, normalmente é diarreia, dengue, que é onde a UBS age.
Aqui no Hospital das Clínicas temos casos significativos dessa realidade. O paciente tem gripe e procura um hospital de alta complexidade, e o hospital tem obrigação de acolher o problema dele.
O problema é que você quebra todo o sistema, pois há uma inversão. Não era para ele vir para cá. Como ele não reconhece a tecnologia leve como tecnologia médica, acha que aqui o problema dele será resolvido, e não necessariamente. Aqui vamos tratar de casos complexos como transplante ou câncer.
Temos uma faixa enorme da população que viaja quatro ou cinco horas para ser atendido por causa de um problema de laringe.

Quando médicos reclamam da falta de infraestrutura dos hospitais, estão falando de tecnologia leve ou dura?
Das duas, mas antes de tudo estão brigando pelas tecnologias duras. O que o Mais Médicos trouxe de importante foi o reconhecimento das tecnologias leves, pois no Brasil há um preconceito com aquilo que acontece na Inglaterra, na Holanda e no Canadá, três países exemplares no uso da atenção primária.
Nesses lugares reconhece-se o agente comunitário que visita a casa para tomar pressão como parte importante de uma tecnologia sofisticada.
É óbvio que vamos ter um grupo que vai precisar de transplante, mas quando não se fala da promoção da saúde como tecnologia, mas apenas do transplante, parece que todos vão transplantar. É somente uma parte da população que vai precisar, e temos que ter o Incor, mas a grande maioria vai precisar das tecnologias leves.

E por que a tendência é exaltar a tecnologia dura?
Pela ideia da especialidade. O médico de família, especializado em tecnologias leves, ganha muito menos. A sedução das tecnologias duras envolve a remuneração superior e o maior reconhecimento científico. Não estou desprestigiando as tecnologias duras, mas as tecnologias leves devem ser mais valorizadas pela cultura brasileira.