A capital norte-coreana vista além do discurso militarista oficial
JOHANNA NUBLAT
ENVIADA ESPECIAL A PYONGYANG
No voo de Pequim a Pyongyang da Air Koryo, a companhia aérea estatal norte-coreana, as comissárias distribuem um exemplar do "Pyongyang Times", em inglês.
Quando embarquei numa terça-feira de setembro, a capa do jornal trazia a foto do ditador Kim Jong-un sorrindo, o que gerou o primeiro momento de tensão da viagem: o Lonely Planet recomenda que não se dobre, rasgue ou jogue fora um jornal com a imagem do líder.
Essa dica integra um pacote de outras compartilhadas na internet ou sugeridas pelas agências de viagens.
Como não se afastar do guia, que acompanha o viajante o tempo todo; não tirar fotos despreocupadamente (há quem recomende até enquadrar as estátuas da família Kim sempre inteiras, e nunca apenas parte delas); e seguir as tradições, como fazer reverências às estátuas e imagens de Kim Il-sung (1912-1994), Kim Jong-il (1941-2011) e, com menor frequência, de Kim Jong-un. Avô, pai e filho, respectivamente, comandam a República desde a fundação, em 1948. Suas imagens, sobretudo dos dois primeiros, são presença constante.
Difícil não chegar a Pyongyang com uma espécie de "manual da autocensura", um compilado de recomendações não oficiais —de oficial, apenas recebi o pedido da embaixada de "respeito".
Assim, com meu exemplar do "Pyongyang Times" guardado como uma joia, desembarquei na capital e fui para o controle de passaportes.
Mas nem todos leram o Lonely Planet: o estrangeiro na minha frente na fila deixou o jornal cair no chão e foi embora sem se dar conta. Passados dois minutos, um guarda se aproximou, recolheu o jornal e olhou para mim como quem diz "é seu?".
Com gestos quase histéricos, o fiz entender que, não, o meu estava bem guardado. Mais dois minutos, recebi o carimbo no passaporte, e a entrada em um dos países mais fechados do mundo.
Mas o sentimento constante de pisar em ovos não me abandonou por sete dias.
Pensei duas vezes em como fazer perguntas, em como guardar tudo o que tinha foto ou nome dos líderes e no que eu estava jogando fora.
Fui hospedada no hotel Koryo: duas torres, cerca de 40 andares e poucos hóspedes —alguns estrangeiros a convite da KASS (associação coreana de cientistas sociais), como eu, e grupos de turistas que iam e vinham. Mais de uma vez jantei sozinha no imenso restaurante do hotel; a companhia garantida, em qualquer refeição, era o kimchi (o fermentado de verduras amado pelos coreanos).
Observadores do país dizem que Pyongyang é uma bolha, onde só têm autorização para viver os mais leais ao regime. E que, na capital, estão as melhores condições de vida —que incluem um acesso mínimo à internet, disponível apenas a alguns.
No quarto do hotel, havia canais estrangeiros de TV (CCTV chinesa, France 24 e a russa RT), telefone para ligar para o exterior, mas, de fato, nenhum sinal de wifi.
Ninguém nunca proibiu um passeio solo pela capital, mas sempre se prontificaram a me acompanhar aos lugares onde eu queria ir (e o "manual da autocensura" havia alertado para nunca me afastar). Assim, estive sempre com meus guias.
VIDA COTIDIANA
Em paralelo às palestras sobre as ideologias nacionais, basicamente a ideia Juche (que desemboca no discurso de independência e autossuficiência) e Songun (assuntos militares em primeiro lugar), a viagem permitiu espiar um pouco da vida cotidiana dos norte-coreanos.
Em um sábado, fomos ao cinema, eu e meus guias, ver um filme indiano de Bollywood que integrava o Festival Internacional de Cinema de Pyongyang: uma história de amor misturada com as aventuras de um "MacGyver" bonitão que escalava montanhas com facilidade —a ação inverídica gerou muita risada entre os 2.000 norte-coreanos que lotaram o cinema.
Houve pouca tentativa de interação comigo,única estrangeira na projeção, mas foi possível ouvir um ou outro "hello" e ver muitos sorrisos.
A recepção amigável esteve em todas as partes. Na trilha de uma cachoeira em Myohyang, a cerca de 150 km da capital, uma senhora pediu uma foto comigo, e outras queriam saber quem eu era.
Enquanto fazíamos um piquenique na cachoeira num domingo, tomando a cerveja nacional (Taedonggang, muito boa), outros grupos se reuniam para fazer churrascos.
Ali todos relaxavam despreocupadamente, algo que percebi, também, nas gargalhadas da plateia do circo.
Cheguei a Pyongyang apenas quatro dias depois do mais recente teste nuclear.
O assunto não escapou das minhas conversas com pesquisadores da KASS, que sustentam o discurso oficial de que armas nucleares são a garantia da paz na península coreana —contestado por boa parte da comunidade internacional, incluindo os EUA e a vizinha Coreia do Sul.
Ouvi inúmeras vezes, incluindo de um monge budista, sobre como eles desejam a reunificação das Coreias, pelas via do Norte. Ouvi muito expressões como "imperialistas americanos" e "marionetes" da Coreia do Sul.
Ouvi a rejeição às críticas da comunidade internacional sobre desrespeito aos direitos humanos —as Nações Unidas já apontaram a ocorrência de graves, sistemáticas e amplas violações de direitos humanos no país.
Após o mergulho de uma semana, peguei o avião de volta a Pequim, contente pela rara abertura concedida a jornalistas estrangeiros, e aliviada por voltar a me sentir em liberdade. Na China.