Análise

Paranoia governamental e direitos humanos

30.jul.2017/AFP
Soldados chineses durante período de treinamento em base militar na Mongólia Interior

RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Enquanto no Brasil a maioria das pessoas busca uma bocada para sugar recursos do Estado, na China, durante os últimos 5.000 anos, as pessoas aprenderam uma coisa: o Estado é o inimigo, e o importante é criar estratégias de segurança familiar e local para se proteger das decisões que vêm de cima.

A história da China é recheada de conflitos internos. Durante a maior parte da sua história, a própria visão de uma China não existia: assim como a Alemanha e a Itália são países que surgiram no século 19 através de uma forçada reunião de diferentes reinos, a China como a entendemos hoje é uma construção recente. No caso da Itália, uma mistura de guerra, diplomacia e rebeliões civis juntou os reinos de Piemonte e Sardenha, as duas Sicílias, Lombardia e Vêneto, os territórios papais e outras cidades-Estado menores.

O caso chinês é muito mais complexo: por exemplo, as dinastias Xia (há mais de 4.000 anos), Han (de cerca de 200 a.C. a 200 d.C.) e Qing (a última, que foi de 1644 a 1912) reinavam por extensões geográficas de tamanhos diferentes. Os Han chegaram a dominar parte do que hoje são a Coreia e o Vietnã.

Em 260 a.C., a China moderna era divida em sete reinos principais.

O mesmo aconteceu em período pouco depois da queda da último imperador da China, Puyi, escolhido pela figura mais interessante do último período dinástico chinês, a imperatriz viúva Cixi, que saiu de uma condição de concubina para efetivamente controlar o país por 47 anos, de 1861 até sua morte, em 1908. De 1916 a 1928, a China passou pelo período dos generais (warlords), que controlavam diferentes partes da região. Existiam dezenas de facções, menores e maiores, com diversas rebeliões, traições e alianças marcando essa época. Após esse período, veio a grande guerra civil da China, que durou até o fim da década de 1940, entre o Partido Comunista e o Partido Nacionalista Kuomitang (PNK).

A República Popular da China como a entendemos hoje foi fundada somente em 1º de outubro de 1949, enquanto muitos membros do PNK se instalaram em Taiwan. Em mais um paradoxo chinês, Sun Yat-Sen é celebrado como um dos grandes líderes da história republicana chinesa, embora também tenha sido membro do PNK.

Duas observações são importantes para entender alguns dos paradoxos chineses. Em primeiro lugar, o Partido Comunista Chinês se posiciona como parte do legado histórico das dinastias. Para isso, promove a ideia de um ininterrupto império chinês que teria sido o mais importante do mundo ao longo da sua história, a não ser pelo intervalo no qual a China foi dominada pelo Ocidente, no século 19. Portanto, caberia ao PCC recolocar o país no seu devido lugar, como o centro do mundo (em mandarim, China é Zhongguó, ou Reino Central). Ou seja, o PCC se apropria do mandato dos céus (T'ien-ming) e do direito divino dos imperadores (T'ien-tzu) para exercer seu controle sobre a sociedade.

Em segundo, todas as dinastias se caracterizaram por uma centralização de poder no qual os mais pobres não teriam voz. O confucionismo, base filosófica e religiosa de grande parte da sociedade chinesa, prega o papel predeterminado do indivíduo na sociedade e que os deveres das pessoas são primeiramente às suas famílias e à sociedade e somente depois a si mesmos. Indivíduos podem ser sacrificados pelo bem comum.

Simultaneamente, o confucionismo prega os valores da educação como forma de melhoria pessoal e a melhor forma de ascensão social, possibilitando a "fuga" do papel predeterminado do indivíduo.

Essa combinação de falta de voz dos indivíduos e mandato dos céus faz com que o PCC estabeleça regras de convívio social no qual esse mandato seja garantido, mesmo que se possa passar por cima do que, no Ocidente, caracterizamos como direitos humanos.

O PCC não age como ditadores paranoicos que tentam limitar a dissidência da população. O seu papel de controlador é muito mais sutil, pois o seu mandato vem, por um lado, naturalmente das tradições do país, e, por outro, de se apropriar dessas tradições reescrevendo a história e se colocando como a instituição que vai trazer de volta a China ao centro do mundo. O argumento para essa revisão da história é que, se qualquer parte da China obtiver autonomia, todo o império entrará em colapso.

Recordo uma vez que viajei de Ningbo para Xangai e esqueci o passaporte, sem o qual não poderia me registrar no hotel. Fui a uma estação policial pegar uma autorização temporária, e o sistema local tinha todas as minhas informações, incluindo cópias das primeiras páginas do meu passaporte. George Orwell ficaria "orgulhoso" do Big Brother chinês.

A China muitas vezes não respeita direitos humanos da forma como os entendemos no mundo ocidental (no Brasil é pior, hoje temos mais de 55 mil assassinatos por ano). Dois de seus maiores artistas, Ai Wei Wei e Liu Xiaobo, este Prêmio Nobel da Paz, já estiveram presos, basicamente por desafiar o sistema. Não há dúvidas de que é difícil aceitar o comportamento de Estado policial da China. Mas, como tudo no mundo moderno, a situação não é preta ou branca. Tem vários tons de vermelho.