Análise

Migração ilegal no próprio país

Kin Cheung/Associated Press
Obra de arte do artista Ai Weiwei apresenta mapa da China feito com latas de leite infantil

RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chineses podem ser migrantes ilegais no seu próprio país. No Brasil, há uma discriminação clara com migrantes de regiões mais pobres -São Paulo e Rio de Janeiro são particularmente ruins nesse tipo de preconceito, mas não chegamos aos pés do desenho do sistema de controle social chinês.

Os critérios para a concessão de cidadania chinesa são bem estritos: pelo menos um dos pais deve ser chinês, a criança deve nascer na China e o seu registro estará associado de forma quase permanente à região onde nasceu, por meio de um sistema chamado hukou.

Todo cidadão chinês possui um hukou ligado ao seu lugar de nascimento -em tese, é muito difícil obter o direito de mudar de região. Uma família com hukou de Anhui, uma região pobre, só pode viver lá. Mudar-se para outra região da China é, na letra da lei, ilegal.

A maior distinção é entre hukous urbanos e rurais. Os direitos de cada cidadão estão intrinsecamente ligados a essa distinção. Acesso aos serviços públicos somente se dá na região de nascimento. Como centros urbanos, como Xangai e Pequim, são mais ricos, com melhores escolas e hospitais, esse sistema cria de fato duas classes sociais, sendo que as famílias urbanas seriam legalmente privilegiadas.

Não há, na China, a ideia de que todos são iguais perante a lei.

O maior impacto é a criação de uma onda de migrantes, a maior parte de homens, que saem do campo para a cidade para mandar dinheiro para a família. Há uma geração de chineses nas áreas rurais que são criados pelo resto da família, vendo os pais uma ou duas vezes por ano. É bom lembrar que mais de 40% da população chinesa, de 1,38 bilhão de pessoas, ainda vive no campo.

Os governos regionais chineses usam o sistema hukou para regular entrada de migrantes. Em épocas de crescimento econômico, o sistema é relaxado, com incentivos concretos como promessas de mudança de hukou para áreas mais prósperas sendo utilizados para atrair pessoas de áreas mais pobres.

Quando um município ou Estado considera que o número de recém-chegados é muito grande, seja por uma recessão ou simplesmente falta de infraestrutura, começa a fazer valer a lei, deportando alguns migrantes como sinal para que menos indivíduos queiram fixar residência, mesmo que temporária, na região.

O sistema não é estático. Há muitas inovações, já que o Estado tenta ao mesmo tempo manter certo controle sobre fluxos migratórios e estimular o desenvolvimento de várias regiões. Isso significa mudar o status de cerca de 100 milhões de habitantes, criando um sistema de transformar hukous rurais em urbanos, sob certas condições.

As maiores e mais atraentes cidades, como Pequim, Xangai, Guangzou (antiga Cantão), Shenzhen, Chengdu, Xian e Wuhan, usam um sistema de pontos, bem parecido com o de países como Inglaterra e Austrália, que aceitam prioritariamente imigrantes mais qualificados.

O grande problema do sistema hukou, assim como aconteceu no Brasil, é criar bolsões de pobreza nos centros urbanos. As favelas brasileiras são resultado direto das intervenções econômicas das décadas de 1950 a 1970, na qual os governos promoviam a industrialização pela substituição de importações. Os subsídios às indústrias em centros urbanos criaram gigantescos incentivos à migração para São Paulo, Rio e outras capitais.

Como a preocupação com os mais pobres nunca foi algo importante na política brasileira, assim como não é na China, criamos cidadãos de segunda classe, infelizmente. O mesmo acontece na China. Isso é um problema que só aparece quando o crescimento desacelera. O desenvolvimento chega a todos, mas a uns muito mais que outros.