CAPÍTULO 4

Pescadores do rio Doce já esperavam reparação antes da tragédia em MG

LUCAS FERRAZ
AVENER PRADO

ENVIADOS ESPECIAIS A GALILEIA (MG), AIMORÉS (MG) E BAIXO GUANDU (ES)

Pescadores que vivem na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo já sabem. A tarefa mais difícil a partir de agora para os milhares de atingidos pelo desastre ambiental no rio Doce, o que inclui eles próprios, será receber dos responsáveis reparações para as perdas financeiras que tiveram.

Prejudicada pelo mar de lama que invadiu a bacia hidrográfica do Doce, a pesca ali está suspensa indefinidamente. Não há previsão de quando poderá ser retomada: há quem garanta que o rio se recuperará em meses, enquanto outros apostam em décadas.

Os pescadores, no entanto, conhecem muito bem o que os espera: há uma década que centenas deles, moradores de municípios mineiros como Ituêta, Resplendor e Aimorés, e de Baixo Guandu, o primeiro banhado pelo rio no lado capixaba, aguardam reparação por danos causados à atividade econômica pela usina hidrelétrica de Aimorés.

Avener Prado/Folhapress
Área rural próxima ao rio Doce e à usina de Aimorés
Área rural próxima ao rio Doce e à usina de Aimorés

O empreendimento, que começou a operar em 2005, alterou o curso do rio Doce, prejudicou a qualidade da água e de sua vazão e reduziu drasticamente o volume de peixes numa área de aproximadamente 20 km. A atividade definhou.

"Antigamente era muito bom pescar aqui, às vezes eu fazia R$ 3.000 no mês. Hoje é difícil chegar a R$ 1.000, R$ 1.200", afirma Leci Estevam Pereira, 55, pescador profissional há mais de 20 anos e atual presidente da associação de pescadores de Aimorés.

Como aconteceu na avalanche de lama que destruiu o rio Doce no mês passado, os danos ocorridos há dez anos também foram provocados por uma empresa controlada pela Vale. A maior mineradora do país é, com a BHP Billiton, uma das donas da Samarco, presidida por Ricardo Vescovi e responsável pela barragem de rejeito de minério de ferro rompida em Mariana.

Por comprometer a atividade econômica dos pescadores, a Aliança Energia, consórcio responsável pela usina formado pela Vale (que detém 55% do negócio) e pela Cemig (empresa de energia do governo mineiro), chegou a fazer um acordo com o Ministério Público Federal: pagaria para 123 pescadores da região, pelas perdas, um salário mínimo mais cesta básica.

Leci é um dos contemplados, e, como a imensa maioria dos que recebem a indenização, ele não tinha deixado de pescar até o dia 16 de novembro, quando o mar de lama chegou na cidade, 11 dias depois do vazamento em Mariana, a 370 km de distância dali.

Dezenas de pescadores, alguns registrados no governo federal como profissionais, acabaram de fora da seleção dos beneficiados e ingressaram com ações individuais na Justiça.

A empresa, contudo, deixou de executar uma série de medidas que foram acordadas com a Procuradoria, como a realização de cursos de capacitação para se criar uma alternativa profissional à pesca.

Avener Prado/Folhapress
Pescador no rio Doce em Aimorés (MG), onde a lama de Mariana chegou 11 dias depois do vazamento
Pescador no rio Doce em Aimorés (MG), onde a lama de Mariana chegou 11 dias depois do vazamento

O valor da reparação, que vem sendo pago mensalmente há pelo menos quatro anos, também é contestado. Os pescadores pedem que a usina pague o valor médio que eles arrecadavam com a pesca antes da sua construção, algo em torno de 2,5 salários mínimos.

A Procuradoria ingressou em setembro deste ano com nova ação contra a usina, cobrando indenização de R$ 50 milhões por danos morais e indenização individual no valor de R$ 90 mil para cada um dos 123 pescadores.

De acordo com o Ministério Público Federal, a conduta dos réus feriu "direitos fundamentais dos pescadores com afronta direta ao direito, ao trabalho e à dignidade da pessoa humana".

A usina de Aimorés informou, em nota, que não comenta ações judiciais em andamento e disse que desenvolve programas sociais e ambientais "conforme previsto no seu licenciamento ambiental". A Vale não se manifestou.

Para muitos, o cerne da discussão do pós-tragédia do rompimento da barragem da Samarco será como reparar os milhares de atingidos, que estão num raio de mais de 552 km, indo pelo menos de Mariana à praia da Regência, em Linhares, no litoral do Espírito Santo. Situações como a reparação dos pescadores mineiros e capixabas deverão se replicar, numa escala imensamente maior, com as vítimas da avalanche de lama que deixou ao menos 11 mortos, destruiu distritos e vilarejos e contaminou todo o rio Doce até o mar capixaba, onde ele deságua.

Avener Prado/Folhapress
Usina Hidrelétrica Eliezer Batista, em Aimorés (MG), cidade na divisa com o Espírito Santo
Usina Hidrelétrica Eliezer Batista, em Aimorés (MG), cidade na divisa com o Espírito Santo

A reportagem da Folha ouviu relatos de dezenas de pessoas nos municípios atingidos pela lama que já anunciam medidas na Justiça para cobrar pelos danos sofridos.

Muitas prefeituras ao longo do rio Doce já começaram os inventários de produtos, animais ou imóveis que foram perdidos ou danificados.

Segundo promotores que acompanham o desenrolar da tragédia, o mais difícil de todo o processo será garantir o cumprimento dos "direitos" dos atingidos.

SELETIVIDADE

Pescadores reconhecidamente profissionais, cadastrados no governo federal e que atuavam há anos em Aimorés, acabaram de fora da indenização da usina, caso de Benilde Madeira, 48, ex-presidente da associação de pescadores locais.

Sua briga pelo direito à indenização já completou dez anos.

Agora, novamente como vítima, ele diz que prefere negociar com a Samarco do que ir mais uma vez à Justiça.

"Esse desastre, agora, acabou com tudo, matou o rio de vez", disse, inconformado, sobre a avalanche de lama que inviabilizou sua vida de pescador.

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Benilde Madeira, 48, que espera há dez anos por indenização pela usina de Aimorés (MG)
Benilde Madeira, 48, que espera há dez anos por indenização pela usina de Aimorés (MG)

"Eu tenho que aceitar o que eles acenarem, não adianta ir para a Justiça e ter tanto transtorno como eu tive. Para não repetir o mesmo que ocorreu com a usina hidrelétrica, a Samarco precisa vir aqui e resolver logo, não dá para deixar para depois", afirma.

Os pescadores não são os únicos insatisfeitos. A Prefeitura de Aimorés também tem queixas sobre a usina e, de quebra, sobre a presença da Vale no município.

"Nunca recebemos pela usina uma quantia satisfatória ou que realmente esperávamos receber", diz o prefeito Alaerte da Silva (DEM). Com um orçamento anual de R$ 50 milhões, a cidade de 25 mil habitantes arrecada por ano com a usina cerca de R$ 200 mil.

Embora não produza uma única pepita de minério de ferro, Aimorés é estratégica para a logística da Vale por ser a última cidade em Minas por onde passa o trem que leva o metal e seus derivados para os portos do Espírito Santo.

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Animais em área rural de Aimorés (MG)
Animais em área rural de Aimorés (MG)

A linha férrea, bastante movimentada durante o dia e a noite, corta o centro da cidade, como acontece em municípios mineradores da região central de Minas.

AGRICULTORES

Aimorés, segundo o prefeito, ainda está contando os problemas causados pelo desastre no rio Doce: 14 mil cabeças de gado não podem mais beber água do rio –a prefeitura diz que um matadouro da região já recusou gado que pastava no leito do rio Doce temeroso de que o animal tenha ingerido os rejeitos, contaminando a carne e também o leite.

Criadores cercaram áreas próximas ao rio para conter os animais e improvisaram caixas-d'água nos pastos. A prefeitura tenta ajudar no fornecimento de água para o gado, mas ainda não encontrou uma solução.

Outros venderam os animais, como fez o jovem agricultor Bruno Cardoso, 23, morador da zona rural do município de Galileia (que tem 7.000 habitantes e fica a 50 km de Governador Valadares).

Ele vendeu 25 cabeças de gado para financiar a instalação de um poço em sua propriedade, onde tem uma pequena plantação de cana-de-açúcar (que era irrigada com a água do rio), além de frutas e verduras.

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Bruno Cardoso, 23, vendeu 25 cabeças de gado depois da chegada da lama em Galileia (MG)
Bruno Cardoso, 23, vendeu 25 cabeças de gado depois da chegada da lama em Galileia (MG)

Nos pequenos municípios que margeiam o rio Doce, sobretudo a partir de Governador Valadares, milhares de agricultores –pequenos, médios e grandes– prejudicados pelo mar de lama também estão se reunindo em sindicatos ou associações para cobrar da Samarco e das empresas controladoras (Vale e BHP Billinton) reparações pelos prejuízos.

Bruno quer indenização dos responsáveis pelo desastre ambiental. Ele já ingressou com ação na Justiça cobrando os gastos que teve com a construção do poço artesiano (que custou R$ 20 mil), além da longa cerca que colocou para isolar o leito do rio do pasto de sua propriedade, onde sobraram duas vacas.

"Quero o ressarcimento de tudo que gastei para comprar de novo as minhas vacas e pagar o banco", diz.