CAPÍTULO 2

Entorno de barragem rompida em Mariana (MG) vira 'Museu da Lama'

LUCAS FERRAZ
AVENER PRADO

ENVIADOS ESPECIAIS A MARIANA E BARRA LONGA (MG)

Uma das primeiras vilas criadas em Minas Gerais graças à exploração mineral, no início do século 18, Bento Rodrigues está se sedimentando com o rejeito do minério de ferro que causou a sua completa destruição, no início do mês.

O histórico vilarejo transforma-se aos poucos numa espécie de "Museu da Lama", com registros da vida cotidiana e recordações pessoais dos moradores misturados aos escombros da tragédia.

Superficialmente, a lama se solidificou, mas simples golpes no solo transformam rapidamente o rejeito em um material pastoso –há muita água acumulada embaixo da crosta, o que resulta em frequentes atoleiros.

Avener Prado/Folhapress
Estragos provocados pelo rompimento da barragem no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG)
Estragos provocados pelo rompimento da barragem no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG)

Com as buscas por desaparecidos encerradas no distrito, a área está completamente isolada. Moradores que deixaram as casas às pressas na tarde do desastre, no dia 5 de novembro, já voltaram ao local para tentar resgatar documentos e pertences que resistiram ao "tsunami" de lama.

São muitos os objetos e sinais de vida ainda expostos. Segundo os bombeiros, o que sobrou nas casas foi abandonado definitivamente pela comunidade.

Nos imóveis que ficaram de pé, ainda que parcialmente destruídos, registros da vida dos moradores: documentos, fotos, antigos retratos pictóricos, o quarto com brinquedos. Na escola local, alguns quadros e pinturas de crianças ficaram intactos nas paredes.

Na tarde da última quarta-feira (25), Paulo Antônio Roberto, 49, voltava ao distrito natal pela primeira vez desde o acidente. Morador de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto que fica a 17 km de Bento Rodrigues, ele só queria ver a destruição de perto.

"Quem conheceu Bento Rodrigues conheceu, agora já era", lamentou-se.

O distrito, que tinha cerca de 600 moradores, agora tem apenas quatro vias, abertas pelas equipes de resgate durante as buscas. Da pequena igreja do século 18, uma das marcas coloniais da região histórica mineira, nada sobrou.

Avener Prado/Folhapress
Casa em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), com chapéu pendurado e o que restou de um relógio de parede
Casa em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), com chapéu pendurado e o que restou de um relógio de parede

A mineração em larga escala da Samarco –empresa presidida por Ricardo Vescovi e controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton–, cujas operações e barragens de rejeito estão acima do povoado, há muito ameaçava a existência do vilarejo.

Muitos moradores que estão alojados em hotéis e pousadas de Mariana afirmam que a mineradora queria mudar o distrito de local para aumentar a segurança de sua área operacional.

Indagada sobre essa intenção, a Samarco não respondeu, limitando-se a informar que havia iniciado há alguns anos a aquisição de imóveis no vilarejo, como uma fazenda de 240 hectares que foi igualmente destruída, com o "intuito de produzir mudas de reflorestamento como parte de seu plano de compensação ambiental".

Batizado com o nome do bandeirante paulista que "descobriu" e começou a explorar ouro no local logo depois da fundação de Ouro Preto, em 1711, o distrito de Bento Rodrigues deve ser reconstruído em outro local.

A lama que devastou o lugar, dizem pessoas envolvidas nas operações pós-tragédia, provavelmente nunca mais sairá do histórico vilarejo, criado e destruído pela exploração mineral.

Avener Prado/Folhapress
Roupas deixadas em Bento Rodrigues (MG)
Roupas deixadas em Bento Rodrigues (MG)

RIO ABAIXO

Após passar por Bento Rodrigues e também causar grande destruição no distrito rural de Paracatu de Baixo, a lama que vazou da barragem da Samarco continuou descendo o rio Gualaxo do Norte, que se encontra no município de Barra Longa (a 60 km da barragem rompida) com o rio do Carmo, que nasce em Ouro Preto.

O encontro das águas potencializou a destruição da enxurrada de rejeitos, que atingiu a cidade de 8.000 habitantes na noite do dia 5 de novembro. Pontes, casas ribeirinhas e roças foram danificadas.

Até a polícia e os órgãos públicos foram surpreendidos no município. Segundo moradores, todos esperavam uma forte enchente, não um tsunami de lama.

Avener Prado/Folhapress
Casa abandonada em Paracatu de Baixo (MG)
Casa abandonada em Paracatu de Baixo (MG)

"Ouvimos que a barragem estava rompida, mas todos diziam que desceria só água. Nesse dia, antes de toda a tragédia, até tirei um cochilo. Minutos antes de a lama chegar passou uma pessoa de moto avisando para todo mundo sair imediatamente", conta José Lana, 60, nascido e criado em Barra Longa –que ele agora chama de "Barra Barro".

O nome do município ganhou diferentes versões no pós-tragédia, como "Barro Longo" e "Barra Lama".

A parte baixa da cidade, ao longo do rio, tem dezenas de casas abandonadas. Uma delas é a de José Lana, cujo quintal dá para o rio e onde a lama chegou a um metro de altura. Na sua roça, ao longo do Gualaxo, ele também teve prejuízos: perdeu 12 cabeças de gado. A maioria das perdas na região está relacionada com a morte de animais.

"Fiquei na escada de minha casa vendo a lama descer. Vi bois dando pernadas e cabeçadas, tentado fugir da morte, em vão. Caminhões e carros desciam junto aos rejeitos. Foi terrível", disse sobre a cena apocalíptica que mais o marcou.

O rejeito de minério que passou por Barra Longa continuou descendo o rio Gualaxo do Norte. Quilômetros a frente, na manhã do dia 6 de novembro, ele chegaria ao município de Rio Doce (a 91 km de Mariana), onde a tragédia tomaria outra dimensão.