Um besouro?

Uma aula de Vladimir Nabokov sobre a anatomia de Gregor Samsa

O escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977), célebre por "Lolita", não passou incólume por "A Metamorfose". Ele estudou o livro a fundo, com uma série de rascunhos sobre o romance em que tentava desvendar, seguindo as pistas do texto kafkiano, em qual inseto Gregor Samsa havia se metamorfoseado, sem explicação alguma.

Sua análise para a novela de Franz Kafka integra o volume "Lições de Literatura", publicado no Brasil pela editora Três Estrelas. Leia um trecho, abaixo:

Ora, em que tipo de "inseto" foi transformado tão subitamente Gregor, o infeliz caixeiro-viajante? Sem dúvida pertence à linhagem dos artrópodos ("de membros articulados") do qual fazem parte os insetos, as aranhas, os centípedes e os crustáceos. Se as "numerosas perninhas articuladas" mencionadas no começo significam mais que seis, então Gregor não seria um inseto do ponto de vista zoológico. Mas acredito que um homem deitado de costas, ao acordar e descobrir que tem seis pernas vibrando no ar, pode considerar que seis é o bastante para ser chamado de "inúmeras". Por isso, assumiremos que Gregor tem seis pernas, que é um inseto. A pergunta seguinte é: que inseto? Alguns estudiosos dizem ser uma barata, o que obviamente não faz sentido. Uma barata é um inseto com formato chato e pernas grandes, e o corpo de Gregor nada tem de achatado: é convexo nos dois lados, ventre e dorso, e as pernas são pequenas. Sua única semelhança com uma barata está na cor marrom. Isso é tudo. Além do mais, ele tem uma barriga xtremamente convexa, dividida em segmentos, e costas duras e abauladas, sugerindo a existência dos estojos de asas. Nos besouros, esses estojos escondem delicadas asinhas que podem se expandir e carregá-los ao longo de quilômetros em um voo bastante acidentado. Curiosamente, o besouro Gregor nunca percebeu que tinha asas debaixo do duro invólucro de suas costas. (Essa é uma interessante observação minha que vocês devem guardar por toda a vida: alguns Gregors, alguns Joes e algumas Janes não sabem que têm asas.) Ademais, ele possui fortes mandíbulas, que usa para fazer girar a chave na fechadura enquanto se ampara nas pernas de trás, o terceiro e poderoso par de pernas. Daí se deduz que seu corpo mediria cerca de noventa centímetros. No curso da história, ele gradualmente se acostuma a usar essas extremidades - pés e antenas. Esse besouro marrom, convexo e do tamanho de um cachorro é bem largo. Imagino que tenha a seguinte aparência:

Reprodução
ORG XMIT: 384401_0.tif Esboço do escritor Vladimir Nabokov, representando o inseto da obra
Reprodução
ORG XMIT: 362201_0.tif Esboço do escritor Vladimir Nabokov representando o inseto da obra

No original em alemão, a velha arrumadeira o chama de Mistkäfer - besouro rola-bosta. É óbvio que a boa senhora está lhe dando esse nome só para ser simpática. Tecnicamente, ele não é um besouro rola-bosta. É simplesmente um besouro. (Devo acrescentar que nem Gregor nem Kafka viram esse besouro com total clareza.)

Examinemos mais de perto a transformação. A mudança, embora chocante e notável, não é tão estranha quanto possa parecer à primeira vista. Um observador de bom senso (Paul L. Landsberg em The Kafka Problem. Ed. Angel Flores, 1946) comenta: "Quando vamos para a cama em um local desconhecido, é comum termos um momento de pasmo ao acordar, uma repentina sensação de irrealidade, e essa experiência deve ocorrer muitas e muitas vezes na vida de um caixeiro-viajante, um modo de vida que torna impossível qualquer senso de continuidade". O senso de realidade depende da continuidade, da duração. Afinal, acordar como um inseto não é muito diferente de acordar como Napoleão ou George Washington. (Conheci um homem que acordou como imperador do Brasil.) Por outro lado, o isolamento e o afastamento da chamada realidade são aquilo que, em última análise, caracteriza constantemente o artista, o gênio, o descobridor. A família Samsa em torno do fantástico inseto nada mais é do que a mediocridade circundando o gênio.