'Kafka penetra o coração da condição humana, torcida e desconfortável'
SYLVIA COLOMBO
EM BUENOS AIRES
Autor de "Grandes Símios" e "Como Vivem os Mortos" (Alfaguara), o escritor britânico Will Self, 53, mergulhou no estudo de Kafka, de onde saíram o ensaio "Kafka's Wound" (a ferida de Kafka) e o documentário ("Will Self's Kafka Journey", para o London Review of Books (veja acima). Abaixo, a entrevista que deu à Folha.
Folha - Por que Kafka ainda importa? Em que sentido o influenciou?
Will Self - Kafka ainda importa porque suas histórias penetram o coração da condição humana e a revela torcida e desconfortável, para a nossa perplexidade. Não há muita literatura que alcance esse nível de universalidade.
Na América Latina, se diz que o "realismo mágico" nasceu quando Gabriel García Marquez leu "A Metamorfose". Semelhante coisa ocorreu na literatura britânica?
Ainda que acredite que o maior impacto de Kafka na Inglaterra tenha sido antes dos anos 1960, não creio que tenha criado aqui nada comparável ao "realismo mágico" de García Márquez. A principal influência, na época, foi política e filosófica. E não foram os textos propriamente que foram influentes, mas a interpretação histórica deles.
Em seu ensaio "Kafka's Wound" (a ferida de Kafka), você diz que Kafka alcançou a "suspensão do ato de não acreditar". Você diria que seu talento essencial para a literatura era técnico?
Sim, mas não apenas. Certamente, "A Metamorfose" é uma obra de coragem e ousadia, de um ponto-de-vista técnico. E eu acredito que todas as interpretações que não reconheçam o que Kafka realiza aí de um ponto de vista técnico são incompletas.
Mas isso não quer dizer que as habilidades de Kafka sejam puramente técnicas, há muito mais nessa história.
O que seria "kafkaesco" nos dias de hoje?
Creio que a análise crítica do que representa aquilo de que Kafka é chamado, como já o observou Milan Kundera, se transformou em uma disciplina acadêmica à parte, a "kafkaologia".
Uma vez que descartamos a visão de que suas obras foram "proféticas" sobre o que viria a ser o meio do século 20, com os regimes totalitaristas europeus, o termo "kafkaesco" se esvazia.
Creio que, nos últimos tempos, transformou-se apenas numa variante de palavras como "assustador", "ameaçador" ou "sobrenatural". E isso é muito limitador.
De que maneira essa leitura mais o influenciou?
Meus contos são muito influenciados por Kafka. Particularmente, o que tomei dele foi a ideia de introduzir um conceito fantástico sem muita explicação ou circunlóquio, apenas pedindo que o leitor suspendesse "o ato de não aceitar".
"A Metamorfose" completa 100 anos. Qual seu momento favorito da história?
Eu diria que é a cena de abertura, obviamente. A magia e a estranheza poética de Kafka está naquelas poucas palavras.
Está aí também a mecânica do foco narrativo de Kafka: ocorre na mente de inseto de Gregor, mete-se em seu pensamento, mas sempre mantendo essa mono-perspectiva rígida, que faz com que o apartamento dos Samsa se transforme num tipo de câmera, desenhada e construída por Kafka com o objetivo de investigar a relação do homem com as coisas.