CARUARU (PE)

Crise e cultura local ajudam a explicar 'onda de mortes' em Caruaru

THIAGO AMÂNCIO
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A CARUARU (PE)

Foi para roubar duas motos que vizinhos mataram, em março, o lavrador Geraldo José da Silva, sua mulher, Joselda, e sua filha, Madalena, em Lagoa do Paulista, zona rural de Caruaru (PE), além de deceparem um braço do filho, Geraldo Júnior, e o golpearem na cabeça, de modo a afundar parte de seu crânio.

"A gente fica numa revolta, numa insegurança muito grande. É muito sofrimento", diz o irmão do agricultor, Erinalvo da Silva, 45, que recebe a reportagem em sua fábrica de tecidos, toda gradeada, e que hoje vive em um condomínio fechado para fugir da crescente violência da cidade.

As mortes violentas disparam neste ano em Caruaru e já chegaram a 242 casos só até a última sexta-feira (17), contra 225 em 2015, o recorde do monitoramento divulgado pelo governo pernambucano, que começou em 2004.

Avener Prado/Folhapress
CARUARU, PE, BRASIL, 14-11-2017: Bairro do Salgado, o mais violento de Caruaru. Na cidade o número de assassinatos explodiu desde 2014, ano em que a cidade registrou 137 mortes violentas. Neste ano, o número já passa de 240. Enquanto homicídios diminuem nas capitais, violência cresce em cidades médias do interior do Brasil; série especial mostra a dinâmica das mortes em diferentes lugares do país. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
Bairro do Salgado, que registrou 14 assassinatos em Caruaru no ano passado e foi o mais violento da cidade

Assassinatos por roubo de pequenos valores são comuns na cidade, explica o delegado Bruno Vital, chefe da DHA (Divisão de Homicídios do Agreste), unidade criada há quatro anos para conter o avanço das mortes violentas na região.

A DHA fica na BR-104, que liga norte e sul de Pernambuco, próximo ao cruzamento com a BR-232, que leva do Recife ao interior. É a junção das duas estradas movimentadas que fazem da cidade um polo regional, ou a "capital do interior", nas palavras da população de lá, rota de passagem para viajantes de todas as partes do Nordeste.

O entroncamento fez crescer ali um dos maiores polos têxteis do país (com Caruaru e as vizinhas Toritama e Santa Cruz do Capibaribe), responsável por boa parte do jeans fabricado no Brasil, além de formar um importante centro comercial, simbolizado pela Feira de Caruaru.

O rápido crescimento econômico, aposta o delegado Vital, também explica a escalada da violência por lá.

"É uma cidade que cresceu muito, mas sem infraestrutura. E a criminalidade aumentou", afirma o delegado, que nasceu em Maceió há 35 anos, mas vive há 25 na cidade agrestina, à época com 216 mil habitantes. Ele lembra de, quando criança, conhecer a maior parte das pessoas que via na cidade, o que já não acontece há tempos, diz.

Apesar de Pernambuco todo viver uma escalada na violência desde 2014, após um período de queda nos assassinatos de 2009 a 2013, o cenário é bem mais grave no interior. Recife, mesmo com os índices em crescimento nos últimos anos, saiu de 1.007 mortes violentas em 2004 para 658 em 2016, queda de 35%.

Caruaru, quarta maior cidade do Estado e a mais populosa entre as que estão fora da região metropolitana da capital (356 mil habitantes), teve 168 mortes violentas em 2004, contra 225 no ano passado –avanço de 34%. A cidade apresentou índice de 63,2 mortes por 100 mil habitantes, mais que o dobro da média nacional, de 29,7.

CRISE

Além do crescimento sem estrutura para receber o alto volume de pessoas que saem de outras cidades para tentar a vida por lá, tudo piorou com a crise econômica, na opinião do delegado.

"Um cara já me confidenciou aqui num interrogatório: 'Eu ganhava R$ 800 na construção civil. Eu roubo um celular desse seu e vendo por R$ 800'. Num crime só ele já ganha o salário do mês todo. Ele disse: 'Eu não era ladrão, não, trabalhava como operário da construção civil. Só que veio a crise do setor, não fechava as contas, eu não conseguia sustentar minha família com um salário mínimo.' O que ele fez? Entrou para o crime."

A crise é apontada como um fator para o crescimento da criminalidade não só porque pessoas perderam o emprego, mas porque o Estado tem menos recursos para combater a violência.

Além disso, a cultura local favorece o aumento das mortes, segundo a advogada Pollyanna Queiroz, professora da Unifavip (universidade local) e que já trabalhou na Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado.

Com base nos mais de 200 tribunais do júri em que já atuou, Pollyanna aponta "três coisas" para se matar em Pernambuco: dinheiro, mulher e cachaça. Para ela, o crime lá está "muito ligado à cultura patriarcal, machista, de Lampião, que ainda é muito arraigada" no interior.

E cita como exemplo a vez em que advogou para um idoso que disse no julgamento não se arrepender, mesmo após dois anos preso, dos mais de 300 golpes de foice que deu em um vizinho que lhe dera dois tapas na cara.

"Um cidadão agricultor, que nunca cometeu um crime na vida", conta ela sobre o homem que ainda foi inocentado do homicídio.

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CARUARU, PE, BRASIL, 15-11-2017: Policiais militares do BPRv (Batalhão de Polícia Rodoviária) durante trabalho em Caruaru. Na cidade o número de assassinatos explodiu desde 2014, ano em que a cidade registrou 137 mortes violentas. Neste ano, o número já passa de 240. Enquanto homicídios diminuem nas capitais, violência cresce em cidades médias do interior do Brasil; série especial mostra a dinâmica das mortes em diferentes lugares do país. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
Policiais militares trabalham pela madrugada em Caruaru, cidade que viu o número de mortes bater recorde

A advogada, que deixou de andar a pé na cidade por medo da violência, destaca ainda a baixa organização dos grupos criminosos locais, que matam muito por cobrança de pequenas dívidas e por disputa de pontos de venda de droga.

Para reverter o cenário, diz, é preciso valorizar o trabalho da polícia –"porque não dá para imaginar segurança pública sem política repressiva". Segundo ela, também é preciso investir em prevenção. Não só em educação, afirma, o que trará resultado a longo prazo, mas em medidas com impacto imediato, como o acolhimento de egressos do sistema prisional, propõe.

Na visão do coronel Luís Aureliano, secretário de Ordem Pública de Caruaru e ex-comandante da PM-PE, "o Brasil enfrentou a mortalidade infantil" nas últimas décadas. Agora "precisa enfrentar a mortalidade juvenil".

PACTO

Os carros da polícia pernambucana trazem todos um adesivo escrito "Pacto pela Vida", em referência ao programa de redução de homicídios que virou exemplo ao fazer o número de mortes no Estado baixar 26% de 2004 a 2013 –de lá para cá, aumentou 44%.

Nas palavras do sociólogo José Luiz Ratton, um dos mentores do Pacto, o foco inicial do programa –de investigação de homicídios e distribuição da PM em áreas vulneráveis– foi desmantelado, e o governo deixou de combater homicídios para tentar controlar o mercado de drogas, "o que nenhum Estado consegue fazer em nenhum lugar do mundo".

Ratton ainda acusa o governo de ter "cedido a um apelo populista, ultraencarcerador e focado nas drogas, e perdeu-se uma política bem sucedida, que estava focada na garantia da vida", diz.

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CARUARU, PE, BRASIL, 15-11-2017: Apreensão de drogas e arma na delegacia de Polícia Civil em Caruaru. Em Caruaru, número de assassinatos explodiu desde 2014, ano em que a cidade registrou 137 mortes violentas. Neste ano, o número já passa de 240. Enquanto homicídios diminuem nas capitais, violência cresce em cidades médias do interior do Brasil; série especial mostra a dinâmica das mortes em diferentes lugares do país. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
Apreensão de drogas e arma em delegacia de Caruaru; tráfico é apontado como fator da alta da violência

Ele cita ainda a operação padrão de PMs do fim do ano passado até meados deste ano, em que os agentes reivindicavam reajuste salarial.

Enquanto isso, o assistente social Felipe Sales vê seus amigos indo embora. Mas ele diz que evita os enterros. "Não gosto de ir, mas posso dizer quantas ausências eu sinto", afirma ele, que ainda solta um "vixe" e, após alguns segundos fazendo as contas, dispara: viu morrer nove amigos próximos de infância.