O politicamente correto

Limite entre o que pode ou não ser dito em países democráticos divide opiniões

Adão/Folhapress
Ilustração Trainees Liberdade de Expressão

CAMILA BACCARIN
EDUARDO MOURA
RICARDO HIAR
DA EDITORIA DE TREINAMENTO

"Biiichaaa!!!" O coro de milhares de vozes espicha a palavra num crescendo que explode quando o goleiro adversário cobra o tiro de meta. Para você, é troça normal e inofensiva do mundo do futebol ou uma demonstração inaceitável de homofobia?

"Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. Na última vez em que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz." A piada postada em rede social por um famoso humorista ultrapassa a liberdade de expressão ou o humor deve ser livre e sem barreiras?

"Li, ouvi, pensei e entendi que há uma longa discussão sobre o uso de 'blackface' [..], por isso decidi refazer a Ivonete sem que ela pareça uma caricatura risível da mulher negra", escreveu o ator Paulo Gustavo, anunciando que deixaria de pintar o rosto para interpretar uma empregada espevitada. Subordinação ao politicamente correto?

Os três casos são tópicos de uma das mais fortes discussões atuais, a contraposição entre o direito à liberdade de expressão e o clamor por um tratamento diferenciado para grupos historicamente vulneráveis, como negros, homossexuais, mulheres, refugiados e imigrantes.

Essa demanda, tachada quase sempre de forma pejorativa como fruto do politicamente correto, acabou levando a culpa por reveses políticos recentes. Ganhou corpo a teoria de que resultados como o voto pró-Brexit e a eleição de Donald Trump seriam uma reação conservadora ao suposto radicalismo dos militantes da correção política.

Numa era em que tudo virou "narrativa", o incorreto ganhou novo nome -discurso de ódio- e virou hit, mas seu significado varia conforme a inclinação de cada um.

Um exemplo do dilema embutido no debate público: "Aqueles que falam preconceituosamente deveriam se calar. Ao falar de maneira homofóbica, machista ou misógina, as pessoas eliminam o lugar do outro como sujeito", diz a escritora Marcia Tiburi, autora de "Como Conversar com um Fascista" (Record, 2015, 196 págs., R$ 44,90).

Mas a Bíblia condena a homossexualidade, contra-argumenta o pastor evangélico Silas Malafaia. "Eu amo as pessoas, mas condeno as práticas. Que democracia é essa em que, quando falo algo contra, sou homofóbico?"

Com a palavra, Fernando Schüler, professor de ciência política do Insper: "A democracia não é necessariamente a vitória da maioria sobre a minoria. É a vitória da minoria barulhenta que consegue produzir maiorias eventuais e vai legislando sobre todos e sobre cada um."

Para defensores do politicamente correto, mesmo o pilar democrático da liberdade de expressão deve ter limites.

"Não é um direito absoluto nem pode ser. As pessoas têm que entender que vivem em sociedade, que existem regras e que precisamos delas, sobretudo no que diz respeito à vida do outro", afirma Djamila Ribeiro, escritora e ativista do movimento negro.

Para os não convertidos, o termo é, muitas vezes, uma tentativa de censura disfarçada. "Em uma sociedade democrática, o embate e o enfrentamento são fundamentais, pressupõem pluralidade. No fundo, acho que muita gente gostaria de um discurso único", declara o historiador e comentarista político Marco Antonio Villa.

Schüler observa que, em sociedades complexas, traçar um limite entre o que pode ou não ser falado é muito difícil, porque há uma diversidade de ordens de valores que são simultaneamente verdadeiras e simultaneamente contraditórias ou excludentes.

"Liberdade de opinião é um valor que prezamos, mas também respeitamos a diversidade de comportamento e de opção sexual. Então, como definir a ordem de valor que vai prevalecer, se ambas são verdadeiras?", pergunta.