O que é

Misteriosa, doença confunde médicos e pode levar anos para ser diagnosticada

Keiny Andrade/Folhapress
Temas - SAO PAULO - 31.07.2017 - ESPECIAL ESCLEROSE - FOLHA TREINAMENTO TREINEE - Rose Berri, 44, aposentada. Foto: KEINY ANDRADE/FOLHAPRESS
Rose Berri, 44, passou por série de diagnósticos durante uma década até descobrir que tem esclerose múltipla

ALLINE MAGALHÃES
FELIPE SILVATTI
DA EDITORIA DE TREINAMENTO

A paulistana Rose Berri, 44, demorou dez anos para ter o diagnóstico de esclerose múltipla, doença autoimune que afeta o cérebro e a medula. Teve sintomas iniciais em 2000, quando acordou com enjoo e tontura. No hospital público, pensaram que era embriaguez e, sem exames, receitaram glicose.

Os sintomas persistiram, e o diagnóstico seguinte foi de labirintite. Como o tratamento não surtiu efeito, os médicos cogitaram aneurisma cerebral, doença na qual ocorre dilatação anormal de um vaso sanguíneo no cérebro. Rose melhorou sem tratamento e ficou dois anos sem sintomas.

As vertigens voltaram, agora com diagnóstico de distúrbios psiquiátricos. "Comecei a me retrair, não falava mais para as pessoas que estava mal."

Depois, começou a enxergar manchas pretas. Suspeita: neurite óptica, problema de visão comumente associado à esclerose múltipla. Só então Rose foi encaminhada ao neurologista e recebeu o diagnóstico correto. "Foi um alívio."

A esclerose múltipla é uma doença rara e seus mecanismos são pouco conhecidos. O que se sabe é que os linfócitos (células de defesa), que percorrem todo o corpo através do sangue, entram no sistema nervoso central e atacam o próprio organismo (veja infográfico).

A média global é de 33 casos por 100 mil habitantes. O índice é maior em países do hemisfério norte, como EUA (135 casos) ou Canadá (291).

O Ministério da Saúde estima que existam 35 mil pessoas com a patologia no Brasil. O fato de ser pouco conhecida no país (média de 15 casos para cada 100 mil habitantes) contribui para a dificuldade no diagnóstico.

Os sintomas surgem mais agressivos em casos de surtos, provocados por forte inflamação no sistema nervoso central. O paciente pode sentir dormência nos membros, tontura, dificuldade de andar e cegueira temporária, entre outros. A diversidade de sintomas confunde até os neurologistas, responsáveis pelo diagnóstico.

É o que aconteceu com a mineira Nanci de Souza, 48, que demorou 25 anos, a partir do primeiro surto, para descobrir a doença. Ao longo da vida, perdeu momentaneamente a capacidade de andar, sentiu dormência e fraqueza no corpo.

Foi atendida por vários especialistas, inclusive por um neurologista de plano de saúde que nem pediu exames. Aos 42 anos, ao tirar a carteira de motorista, passou por momentos de estresse, o que, diz, intensificou os sintomas. "Senti adormecer o lado esquerdo do corpo." Após exames, obteve o diagnóstico correto. Antes, houve ainda suspeita de AVC.

A identificação da esclerose múltipla é complexa. "Fazer o diagnóstico é como montar um quebra-cabeças", compara o neurologista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Rodrigo Kleinpaul.

A avaliação inclui observação clínica dos sintomas, exame de ressonância magnética, de sangue e, para alguns casos, o exame de líquor (coleta do fluido da coluna vertebral). Quanto mais cedo o diagnóstico, maior o controle dos surtos e menores as sequelas.

FALSO POSITIVO

Se os pacientes percorrem uma saga entre diagnósticos equivocados para descobrir que têm esclerose múltipla, o oposto também acontece. O paulista Jorge Terada, 62, passou 22 dias na UTI recebendo tratamento para esclerose múltipla, doença que não tinha.

Quando seu quadro se agravou, Terada perdeu força muscular e precisou de sonda para se alimentar. Finalmente, os médicos descobriram que ele tinha um distúrbio que afeta os nervos de forma generalizada, causado pela diabetes.

Uma pesquisa publicada no periódico "Neurology", em agosto de 2016, feita por colaboradores de quatro institutos médicos americanos, identificou 110 pacientes diagnosticados erroneamente com esclerose múltipla no período de um ano.

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a doença é mais conhecida e a prevalência, alta. O país possui 135 casos da doença por 100 mil pessoas, segundo dados de 2013 da Federação Internacional da Esclerose Múltipla, muito acima da média global.

A pesquisa identificou a confusão do diagnóstico da doença por parte dos médicos até mesmo com condições comuns, como enxaqueca e fibromialgia. Como principal causa do equívoco, Andrew Jay Solomon, neurologista da Universidade de Vermont (EUA) e coordenador do estudo, apontou a confiança excessiva na tecnologia em detrimento da análise clínica dos sintomas.

"É um caso no qual a tecnologia pode nos ajudar a diagnosticar, mas, quando as pessoas se apoiam muito na ressonância magnética, há um problema", disse à reportagem.

SUS

Na rede pública, a demora para o atendimento costuma ser maior do que na suplementar. "No particular, [a realização do exame de ressonância] é imediata; no convênio, demora dias ou semanas, no SUS pode demorar um ano ou mais", declara a neurologista Liliana Russo, da Abem (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla).

Há equipamentos suficientes nas redes pública e privada, de acordo com o neurorradiologista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Emerson Gasparetto, mas o problema é a má distribuição.

Dados do Ministério da Saúde mostram que a rede pública do Distrito Federal tem um aparelho de ressonância para 49 mil pessoas -superior à média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), de um para 70 mil pessoas.

Já Maranhão e Amapá têm um equipamento para mais de 260 mil pessoas. De acordo com a Secretaria de Saúde do Amapá, o Estado não tem equipamentos próprios e o atendimento é feito por empresas terceirizadas, no prazo de 30 dias. A Secretaria de Saúde do Maranhão afirmou que, em todo o Estado, apenas a cidade de Caxias tem fila para o exame, com tempo médio estimado de 15 dias.