Em um dos celeiros do país, 172 mil famílias sofrem para se alimentar
AMANDA MASSUELA
ANNA RANGEL
DA EDITORIA DE TREINAMENTO
No Tocantins, o rio Galhão empresta seu nome a duas realidades opostas: uma fazenda ultramoderna do tamanho de um quarto da área da cidade de São Paulo, e uma comunidade descendente de escravos que tem na cozinha apenas sal e óleo.
O contraste em Mateiros, município onde estão as Galhão, se repete em outros pontos do Matopiba, região definida formalmente pelo governo federal, em maio, como a nova fronteira agrícola do Brasil.
O Matopiba, acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, é promissor por ser uma das últimas áreas de expansão da agricultura de larga escala no mundo. A expectativa é de que, na safra 2014-2015, sejam produzidas ali 20 milhões de toneladas de grãos, quase 10% da produção nacional.
O sucesso do agronegócio e investimentos na indústria de agricultura e pecuária aumentou cinco vezes o número de milionários no Tocantins. De dez, a quantidade de pessoas com renda anual acima de US$ 1 milhão subiu para 61 --o maior aumento no país na última década, segundo a Receita Federal.
Nesse mesmo Tocantins, 37,6% dos domicílios --ou seja, 172 mil famílias-- enfrentam algum tipo de dificuldade na hora de colocar alimentos na mesa, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2013.
A Agrícola Rio Galhão, sociedade de produtores rurais paulistas, se dedica ao cultivo de 5,5 mil hectares de milho e soja (cerca de duas vezes o centro histórico paulistano, que tem 2.600 hectares). Ali, é possível encontrar maquinário de última geração a poucos quilômetros das enxadas de uma comunidade quilombola.
"É uma região que vem se desenvolvendo muito, recebendo investimentos de produtores do Sul e de empresas de capital aberto", diz o empresário paulistano Sérgio Bueno, 47, que comprou terras na região em 1986.
Nos limites da fazenda de Bueno, ficam as casas de taipa com teto de palha onde vivem cerca de 200 moradores da comunidade quilombola Galhão. "Faz tempo que a gente está aqui. Os meninos, filhos e netos foram todos nascidos e criados nesta terra. Ninguém nunca saiu", diz a agricultora aposentada Maria de Lurdes Gomes, 59. Mãe de 12 filhos e avó de tantos que nem lembra o número exato, ela divide hoje um aposento com o marido e quatro netos.
Enquanto as terras de Bueno produzem 12 mil toneladas de milho por safra, os quilombolas plantam mandioca para comer e vendem o pouco que sobra.
Uma vez por mês, toda a família se reúne na casa de Maria para produzir farinha a partir da mandioca colhida. A raiz é cozida, seca em sacos de palha de buriti e torrada em um tanque por duas horas, pelo menos. As filhas se revezam para mexer a farinha durante o preparo, enquanto aos homens cabe a tarefa de moer e secar a mandioca. "Não dura muito. Esses meninos têm muita fome", diz Maria.
No Tocantins, 27 comunidades são reconhecidas como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares, mas nenhuma possui o título de posse da terra. "Antes a gente plantava arroz, feijão, milho, abóbora. Mas agora, a gente não pode. O espaço está pequeno demais por causa das fazendas, estamos cercados", reclama Maria de Lurdes, que recebe um auxílio de R$ 110 mensais do Bolsa Família.
O isolamento e a péssima condição das estradas dificultam o acesso a alimentos que Maria não planta mais, como arroz e feijão. Cerca de 50 km separam sua casa do mercado mais próximo, no centro de Mateiros (a 260 km da capital, Palmas).
Quando seu filho consegue comprar um boi, os próprios moradores o abatem e dividem a carne entre as famílias. Maria salga as peças e as mantém penduradas no forro da cozinha para consumi-las ao longo das próximas semanas.
O defensor público agrário Hud Ribeiro, que integra o projeto Defensoria Quilombola, encontrou na comunidade Galhão uma situação parecida com a que as outras 11 vivem. Desde 2011, eles visitam as comunidades na tentativa de articular políticas públicas para a melhoria de vida dessa população. A principal conquista foi a chegada de energia elétrica, há dois anos.
O empresário Sérgio Bueno acredita que a presença dos grandes grupos agrícolas pode desenvolver a infraestrutura da região. "Gerando mais empregos, melhora a qualidade de vida da população como um todo. Essa é a equação", afirma.
A falta de asfalto nas estradas e de serviços básicos para a população são problemas que, em sua opinião, podem ser revertidos com a demanda das grandes fazendas.
A necessidade de insumos e de profissionais, como mecânicos e tratoristas, seria o catalisador do que ele chama de "economia satélite". "Você tem toda uma corrente de melhorias que se forma, mas não é da noite para o dia", afirma.
O governo estadual diz que está iniciando uma série de políticas para inclusão das famílias mais pobres. "Estamos ainda em estágio de diagnóstico situacional", diz a secretária de Trabalho e Assistência Social, Patrícia Amaral.
Enquanto isso, dona Maria segue seus dias à base de mandioca. "Nós precisamos de alguma ajuda, mas não sabemos nem a quem pedir.