A HERANÇA EVITA

Uma imagem ainda viva

Em 17 de outubro de 1951, no balcão da Casa Rosada, Evita saúda multidão reunida na praça de Maio 17.out.1951/Associated Press
Em 17 de outubro de 1951, no balcão da Casa Rosada, Evita saúda multidão reunida na praça de Maio

SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

Ambas são conhecidas pelo primeiro nome.

Mesmo com sobrenomes famosos, herdados dos maridos, Eva Perón (1919-1952) e Cristina Kirchner, a partir de um certo momento da história, já não precisaram mais usá-los.

Hoje, tanto para apoiadores como para opositores, elas são conhecidas simplesmente como Eva (ou Evita) e Cristina.

Mas os paralelos entre as duas líderes peronistas não param aí.

Divulgação
Cristina Fernández de Kirchner ao inaugurar mostra sobre Evita no Museu Histórico de Moscou, em abril de 2015
Cristina Fernández de Kirchner ao inaugurar mostra sobre Evita no Museu Histórico de Moscou, em abril de 2015

Ambas conquistaram popularidade ao dirigir-se diretamente a problemas dos trabalhadores comuns.

Eva o fez por meio de ações de caridade e designando verbas públicas (mesmo sem ocupar formalmente um cargo) para a construção de moradias, hospitais e asilos para os mais humildes.

Cristina, implementando planos de assistência social (que hoje beneficiam 3,5 milhões de pessoas), ampliando benefícios a aposentados e barateando custos de transporte e energia por meio de subsídios.

Mesmo enfrentando uma difícil situação econômica –inflação a quase 30% e desaceleração do PIB–, e sob várias acusações de corrupção, a atual mandatária deixará o cargo em dezembro mantendo um índice de 50% de aprovação popular.

Se Evita discursava dos balcões da Casa Rosada, Cristina prefere os frequentes pronunciamentos em cadeia nacional, muitas vezes em horário nobre. Assim, ambas construíram seu perfil populista.

17.out.1950/Associated Press
Ao lado do marido, Juan Domingo Perón, Evita acena para o público do balcão da Casa Rosada, em Buenos Aires
Ao lado do marido, Juan Domingo Perón, Evita acena para o público do balcão da Casa Rosada, em Buenos Aires

Em falas efusivas, bem articuladas e às vezes raivosas, as duas mulheres atacaram a elite econômica argentina. "Devemos queimar o Barrio Norte (1)?", disse Evita uma vez em um comício, referindo-se a uma área nobre de Buenos Aires.

Já Cristina ataca as nações "imperialistas" e as "corpos" (diminutivo para "corporações", ou seja, grandes empresas em geral), chegando a comparar jornalistas de diários opositores a "grupos de tarefas", como eram chamados os agentes da repressão durante a ditadura militar (1976-1983).

17 de outubro de 1945

Às vésperas do aniversário de 70 anos do peronismo –a data tida como fundadora é o 17 de outubro de 1945, quando uma multidão compareceu à praça de Maio para exigir a liberação de Perón, mantido cativo pelos militares–, os símbolos peronistas seguem vivos no imaginário e em mais uma campanha eleitoral.

Homenagens, lançamentos de livros (como "O Relato Peronista", de Silvia Mercado) e filmes ("Eva No Duerme", de Pablo Agüero, exibido em setembro no Festival de San Sebastián, na Espanha) são apenas alguns desdobramentos de um antigo debate.

Em setembro, o governo lançou uma cartilha para crianças de jardim da infância que apresenta "o Estado" representado por uma figurinha de Cristina.

Reprodução
Na cartilha, as crianças têm de montar figuras da família, da comunidade e do
Na cartilha, as crianças têm de montar figuras da família, da comunidade e do "Estado", representado por Cristina

Na capa, o livreto traz a imagem de Evita ao lado do selo do Ministério do Desenvolvimento Social.

Reprodução
Na capa da cartilha, a imagem de Evita
Na capa da cartilha, a imagem de Evita

Parece algo menor, caricato, mas quem tem memória se incomodou.

Afinal, durante o governo de Perón, era comum a impressão de material escolar com a imagem e os "ensinamentos" da chamada "mãe dos pobres". Os caderninhos ensinavam as crianças a repetirem: "Evita me ama", ou "Eu amo papai, mamãe, Perón e Eva".

Nas palavras do Prêmio Nobel de Literatura V.S. Naipaul, em seu ensaio clássico (e muito crítico) sobre a Argentina "The Return of Eva Perón" (Alfred A. Knopf, importado), o "legado" de Eva Perón se resumiu a "uma visão infantil de poder, justiça e vingança".

As palavras do autor britânico, escritas em 1972, parecem vivas ainda nos dias de hoje.

Os adjetivos "infantil" e "vingativa" são usados com frequência pelos críticos do atual governo para atacar Cristina.

Eduardo Di Baia - 26.jul.2011/Associated Press
Inauguração de imagem de Evita Perón em Buenos Aires, em 2011, no 59º aniversário de sua morte
Inauguração de imagem de Evita Perón em Buenos Aires, em 2011, no 59º aniversário de sua morte

Por fim, as duas mulheres também articularam suas redes de alianças a partir da relação com os maridos e tiraram proveito político do apelo novelesco de seus romances.

Evita, ao exaltar como o amor a Perón tirou-a de uma vida ordinária para um caminho virtuoso.

Cristina, ao capitalizar o luto após a morte de Néstor, em 2010, recuperando pontos de aprovação popular num momento de desgaste do governo.

Às vésperas de uma nova eleição presidencial, que ocorrerá em 25 de outubro e marcará o fim da gestão de Cristina (ela não pode concorrer novamente ao cargo), a imagem de Eva Perón continua viva como instrumento político.

Para especialistas ouvidos pela Folha, entender o significado desse ícone histórico é a chave para compreender as particularidades do populismo argentino em relação ao de outros países da região.

Até o candidato opositor ao kirchnerismo, Mauricio Macri, não resistiu em apelar à imagem do general Perón em seus últimos dias de campanha.

No dia 8 de outubro, inaugurou uma sorridente imagem do líder peronista, de braços levantados e em roupas de civil. A estátua de bronze de 2,5 toneladas e 5 metros de altura foi colocada numa praça próxima à Casa Rosada, na esquina das avenidas Paseo Colón e Belgrano.

O título da obra é "Todos Unidos Triunfaremos", parte de uma estrofe conhecida da marcha peronista.

Javier Coltrane/Efe
Estátua de Perón inaugurada pelo chefe de governo de Buenos Aires, Mauricio Macri, no dia 8 de outubro
Estátua de Perón inaugurada pelo chefe de governo de Buenos Aires, Mauricio Macri, no dia 8 de outubro

'SEREI MILHÕES'

Enquanto novos estudos históricos e jornalísticos e recentes descobertas médicas permitem montar hoje um retrato mais acurado da mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974) e dos bastidores da política daqueles anos, a narrativa oficial que a transformou em heroína do povo ainda é utilizada pela propaganda governista.

Há controvérsia sobre Eva ter mesmo dito a frase "voltarei e serei milhões", mas o fato é que Cristina apresentou-se como um retorno de sua figura e de suas medidas.

No plano político e econômico, ela e seu marido e antecessor adotaram a posição nacionalista e "anti-imperialista" do peronismo clássico –que se concretizou em medidas protecionistas, que colaboraram para isolar o país do mercado internacional, e em programas de transferência de verbas para a população de baixa renda.

Juan Mabromata - 25.jul.2012/AFP
Cristina Kirchner durante o lançamento da nota de cem pesos com a imagem de Evita, em 2012
Cristina Kirchner durante o lançamento da nota de cem pesos com a imagem de Evita, em 2012

Cristina também erigiu dois murais com a imagem da mulher de Perón em plena 9 de Julho, a principal avenida de Buenos Aires, e trocou a efígie da nota de 100 pesos, que antes era a do general e ex-presidente Julio Argentino Roca (1843-1914) –conhecido por realizar uma campanha que dizimou os indígenas ao sul da Argentina– pela de sua madrinha política.

Walter Astrada/Associated Press
Moeda de 1 peso, com a efígie de Evita, lançada em 1997, em comemoração aos 50 anos do voto feminino
Moeda de 1 peso, com a efígie de Evita, lançada em 1997, em comemoração aos 50 anos do voto feminino

Apesar de mais de um candidato presidencial ser de origem peronista, Daniel Scioli, hoje o favorito para vencer a eleição, é quem apela mais à imagem de Eva em campanha.

Não é à toa que, no ginásio de futebol de salão do Villa La Nata, clube que criou e no qual joga, há estátuas de Perón e de Eva, postadas como se estivessem vendo-o disputar as partidas.

Atual governador da província de Buenos Aires, Scioli também negocia o apoio de movimentos políticos e de agrupamentos estudantis que têm Evita como máxima inspiração e exercem forte influência entre jovens e habitantes de regiões com poucos recursos –as chamadas "villas miserias" (2).

O principal deles é o Movimento Evita, cuja maior força está nas atividades com a população de baixa renda dos arredores de Buenos Aires, mas que possui também mais de 70 mil apoiadores em outras províncias.

Martin Zabala - 17.set.2015/Xinhua
Daniel Scioli (dir.) e Evo Morales, presidente da Bolívia, durante partida de futebol no clube Villa La Nata
Daniel Scioli (dir.) e Evo Morales, presidente da Bolívia, durante partida de futebol no clube Villa La Nata

O Movimento Evita nasceu dos piquetes contra o governo de Fernando De la Rúa, em 2001, e cresceu quando Néstor os apadrinhou para que se tornassem um grupo político.

Junto ao La Cámpora (3) e a outros 30 grupos, o Movimento Evita integra a frente partidária Unidos e Organizados –parte importante da Frente para a Vitória, aliança governista.

Enquanto o La Cámpora passou a ocupar ministérios e estatais, os outros grupos apostaram na militância juvenil e no trabalho comunitário em importantes redutos eleitorais –principalmente na província de Buenos Aires, onde estão 40% do eleitorado do país.

Alguns desses grupos clamam ser inspirados pelos "montoneros" (4) e na máxima "si Evita viviera, seria montonera" (se Evita estivesse viva, seria montonera).

Na base de muita conversa e negociação, Scioli tem conseguido apoio desses grupos à sua candidatura. Essa aliança é essencial para que obtenha mais votos, uma vez que sua base eleitoral está mais vinculada a sindicatos e trabalhadores da indústria, um outro tipo de militância.

HOJE

Historiadores ouvidos pela Folha explicam a relevância da imagem de Eva nos dias de hoje.

"O peronismo de Cristina está mais associado a Evita e aos montoneros do que ao general Perón. Perón, quando voltou do exílio, nos anos 1970, se desassociou da militância dos montoneros e ficou com o setor mais à direita do peronismo. Por isso o símbolo de Evita é mais eficaz, hoje, para o kirchnerismo. Sobretudo junto aos mais humildes. Usar a figura de Evita rende, sim, apoio eleitoral", diz à Folha o historiador Luis Alberto Romero, da Universidade de Buenos Aires.

Associated Press
Evita e Perón em trajes de gala, na Casa Rosada, em Buenos Aires, em foto sem data
Evita e Perón em trajes de gala, na Casa Rosada, em Buenos Aires, em foto sem data

Para Federico Finchelstein, da New School, de Nova York, "Evita continua sendo mais mobilizadora do que Juan Perón, como também acontecia quando ela estava viva. Evita é uma lenda, um mito, cujo uso muda com o tempo e justifica distintas políticas. Foi usada nos anos 70 pelos montoneros, mas também pelos neofascistas da Triple A [esquadrão da morte que atuou durante o governo de Isabel Perón, nos anos 70]. Mas a forma de fazer política continua sendo a mesma. Para o populismo, o passado é sempre uma desculpa para justificar o presente".

Especialistas atribuem ao forte carisma pessoal de Cristina seus altos índices de aprovação neste final de governo. Seus 50% de aprovação são superiores aos índices de alguns de seus colegas da região, como a chilena Michelle Bachelet, o colombiano Juan Manuel Santos e a brasileira Dilma Rousseff.

"A principal razão desse número é Cristina mesmo, é mérito dela e de seu carisma em manter-se popular com os números macroeconômicos indo contra", diz o analista político Patrício Giusto.

Por superstição, jogo de marketing ou ideologia, muitos políticos e suas mulheres tentaram colar-se à imagem de Evita em suas campanhas eleitorais.

Não é por acaso, portanto, que a favorita para ser a próxima primeira-dama da Argentina, a ex-modelo Karina Rabolini, vem exibindo nos últimos meses um coque à la Eva e reforçando a propaganda do marido, o peronista Daniel Scioli, dando publicidade a seu amplo trabalho de caridade no "conurbano" de Buenos Aires.

Natacha Pisarenko - 10.ago.2015/Associated Press
Daniel Scioli e sua mulher, Karina Rabolini, um dia após as eleições primárias
Daniel Scioli e sua mulher, Karina Rabolini, um dia após as eleições primárias

Há alguns meses, participou da promoção do livro "Eva Perón y su Obra", do historiador Pablo Vázquez, e desconversou. "Não tenho tempo de ir ao cabeleireiro, e esse penteado é mais prático", disse, mas admitiu que admira a líder peronista e se identifica com ela.