Uma imagem ainda viva

SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES
Ambas são conhecidas pelo primeiro nome.
Mesmo com sobrenomes famosos, herdados dos maridos, Eva Perón (1919-1952) e Cristina Kirchner, a partir de um certo momento da história, já não precisaram mais usá-los.
Hoje, tanto para apoiadores como para opositores, elas são conhecidas simplesmente como Eva (ou Evita) e Cristina.
Mas os paralelos entre as duas líderes peronistas não param aí.
Divulgação | ||
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Cristina Fernández de Kirchner ao inaugurar mostra sobre Evita no Museu Histórico de Moscou, em abril de 2015 |
Ambas conquistaram popularidade ao dirigir-se diretamente a problemas dos trabalhadores comuns.
Eva o fez por meio de ações de caridade e designando verbas públicas (mesmo sem ocupar formalmente um cargo) para a construção de moradias, hospitais e asilos para os mais humildes.
Cristina, implementando planos de assistência social (que hoje beneficiam 3,5 milhões de pessoas), ampliando benefícios a aposentados e barateando custos de transporte e energia por meio de subsídios.
Mesmo enfrentando uma difícil situação econômica –inflação a quase 30% e desaceleração do PIB–, e sob várias acusações de corrupção, a atual mandatária deixará o cargo em dezembro mantendo um índice de 50% de aprovação popular.
Se Evita discursava dos balcões da Casa Rosada, Cristina prefere os frequentes pronunciamentos em cadeia nacional, muitas vezes em horário nobre. Assim, ambas construíram seu perfil populista.
17.out.1950/Associated Press | ||
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Ao lado do marido, Juan Domingo Perón, Evita acena para o público do balcão da Casa Rosada, em Buenos Aires |
Em falas efusivas, bem articuladas e às vezes raivosas, as duas mulheres atacaram a elite econômica argentina. "Devemos queimar o Barrio Norte (1)?", disse Evita uma vez em um comício, referindo-se a uma área nobre de Buenos Aires.
Já Cristina ataca as nações "imperialistas" e as "corpos" (diminutivo para "corporações", ou seja, grandes empresas em geral), chegando a comparar jornalistas de diários opositores a "grupos de tarefas", como eram chamados os agentes da repressão durante a ditadura militar (1976-1983).
17 de outubro de 1945
Às vésperas do aniversário de 70 anos do peronismo –a data tida como fundadora é o 17 de outubro de 1945, quando uma multidão compareceu à praça de Maio para exigir a liberação de Perón, mantido cativo pelos militares–, os símbolos peronistas seguem vivos no imaginário e em mais uma campanha eleitoral.
Homenagens, lançamentos de livros (como "O Relato Peronista", de Silvia Mercado) e filmes ("Eva No Duerme", de Pablo Agüero, exibido em setembro no Festival de San Sebastián, na Espanha) são apenas alguns desdobramentos de um antigo debate.
Em setembro, o governo lançou uma cartilha para crianças de jardim da infância que apresenta "o Estado" representado por uma figurinha de Cristina.
Reprodução | ||
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Na cartilha, as crianças têm de montar figuras da família, da comunidade e do "Estado", representado por Cristina |
Na capa, o livreto traz a imagem de Evita ao lado do selo do Ministério do Desenvolvimento Social.
Reprodução | ||
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Na capa da cartilha, a imagem de Evita |
Parece algo menor, caricato, mas quem tem memória se incomodou.
Afinal, durante o governo de Perón, era comum a impressão de material escolar com a imagem e os "ensinamentos" da chamada "mãe dos pobres". Os caderninhos ensinavam as crianças a repetirem: "Evita me ama", ou "Eu amo papai, mamãe, Perón e Eva".
Nas palavras do Prêmio Nobel de Literatura V.S. Naipaul, em seu ensaio clássico (e muito crítico) sobre a Argentina "The Return of Eva Perón" (Alfred A. Knopf, importado), o "legado" de Eva Perón se resumiu a "uma visão infantil de poder, justiça e vingança".
As palavras do autor britânico, escritas em 1972, parecem vivas ainda nos dias de hoje.
Os adjetivos "infantil" e "vingativa" são usados com frequência pelos críticos do atual governo para atacar Cristina.
Eduardo Di Baia - 26.jul.2011/Associated Press | ||
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Inauguração de imagem de Evita Perón em Buenos Aires, em 2011, no 59º aniversário de sua morte |
Por fim, as duas mulheres também articularam suas redes de alianças a partir da relação com os maridos e tiraram proveito político do apelo novelesco de seus romances.
Evita, ao exaltar como o amor a Perón tirou-a de uma vida ordinária para um caminho virtuoso.
Cristina, ao capitalizar o luto após a morte de Néstor, em 2010, recuperando pontos de aprovação popular num momento de desgaste do governo.
Às vésperas de uma nova eleição presidencial, que ocorrerá em 25 de outubro e marcará o fim da gestão de Cristina (ela não pode concorrer novamente ao cargo), a imagem de Eva Perón continua viva como instrumento político.
Para especialistas ouvidos pela Folha, entender o significado desse ícone histórico é a chave para compreender as particularidades do populismo argentino em relação ao de outros países da região.
Até o candidato opositor ao kirchnerismo, Mauricio Macri, não resistiu em apelar à imagem do general Perón em seus últimos dias de campanha.
No dia 8 de outubro, inaugurou uma sorridente imagem do líder peronista, de braços levantados e em roupas de civil. A estátua de bronze de 2,5 toneladas e 5 metros de altura foi colocada numa praça próxima à Casa Rosada, na esquina das avenidas Paseo Colón e Belgrano.
O título da obra é "Todos Unidos Triunfaremos", parte de uma estrofe conhecida da marcha peronista.
Javier Coltrane/Efe | ||
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Estátua de Perón inaugurada pelo chefe de governo de Buenos Aires, Mauricio Macri, no dia 8 de outubro |
'SEREI MILHÕES'
Enquanto novos estudos históricos e jornalísticos e recentes descobertas médicas permitem montar hoje um retrato mais acurado da mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974) e dos bastidores da política daqueles anos, a narrativa oficial que a transformou em heroína do povo ainda é utilizada pela propaganda governista.
Há controvérsia sobre Eva ter mesmo dito a frase "voltarei e serei milhões", mas o fato é que Cristina apresentou-se como um retorno de sua figura e de suas medidas.
No plano político e econômico, ela e seu marido e antecessor adotaram a posição nacionalista e "anti-imperialista" do peronismo clássico –que se concretizou em medidas protecionistas, que colaboraram para isolar o país do mercado internacional, e em programas de transferência de verbas para a população de baixa renda.
Juan Mabromata - 25.jul.2012/AFP | ||
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Cristina Kirchner durante o lançamento da nota de cem pesos com a imagem de Evita, em 2012 |
Cristina também erigiu dois murais com a imagem da mulher de Perón em plena 9 de Julho, a principal avenida de Buenos Aires, e trocou a efígie da nota de 100 pesos, que antes era a do general e ex-presidente Julio Argentino Roca (1843-1914) –conhecido por realizar uma campanha que dizimou os indígenas ao sul da Argentina– pela de sua madrinha política.
Walter Astrada/Associated Press | ||
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Moeda de 1 peso, com a efígie de Evita, lançada em 1997, em comemoração aos 50 anos do voto feminino |
Apesar de mais de um candidato presidencial ser de origem peronista, Daniel Scioli, hoje o favorito para vencer a eleição, é quem apela mais à imagem de Eva em campanha.
Não é à toa que, no ginásio de futebol de salão do Villa La Nata, clube que criou e no qual joga, há estátuas de Perón e de Eva, postadas como se estivessem vendo-o disputar as partidas.
Atual governador da província de Buenos Aires, Scioli também negocia o apoio de movimentos políticos e de agrupamentos estudantis que têm Evita como máxima inspiração e exercem forte influência entre jovens e habitantes de regiões com poucos recursos –as chamadas "villas miserias" (2).
O principal deles é o Movimento Evita, cuja maior força está nas atividades com a população de baixa renda dos arredores de Buenos Aires, mas que possui também mais de 70 mil apoiadores em outras províncias.
Martin Zabala - 17.set.2015/Xinhua | ||
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Daniel Scioli (dir.) e Evo Morales, presidente da Bolívia, durante partida de futebol no clube Villa La Nata |
O Movimento Evita nasceu dos piquetes contra o governo de Fernando De la Rúa, em 2001, e cresceu quando Néstor os apadrinhou para que se tornassem um grupo político.
Junto ao La Cámpora (3) e a outros 30 grupos, o Movimento Evita integra a frente partidária Unidos e Organizados –parte importante da Frente para a Vitória, aliança governista.
Enquanto o La Cámpora passou a ocupar ministérios e estatais, os outros grupos apostaram na militância juvenil e no trabalho comunitário em importantes redutos eleitorais –principalmente na província de Buenos Aires, onde estão 40% do eleitorado do país.
Alguns desses grupos clamam ser inspirados pelos "montoneros" (4) e na máxima "si Evita viviera, seria montonera" (se Evita estivesse viva, seria montonera).
Na base de muita conversa e negociação, Scioli tem conseguido apoio desses grupos à sua candidatura. Essa aliança é essencial para que obtenha mais votos, uma vez que sua base eleitoral está mais vinculada a sindicatos e trabalhadores da indústria, um outro tipo de militância.
HOJE
Historiadores ouvidos pela Folha explicam a relevância da imagem de Eva nos dias de hoje.
"O peronismo de Cristina está mais associado a Evita e aos montoneros do que ao general Perón. Perón, quando voltou do exílio, nos anos 1970, se desassociou da militância dos montoneros e ficou com o setor mais à direita do peronismo. Por isso o símbolo de Evita é mais eficaz, hoje, para o kirchnerismo. Sobretudo junto aos mais humildes. Usar a figura de Evita rende, sim, apoio eleitoral", diz à Folha o historiador Luis Alberto Romero, da Universidade de Buenos Aires.
Associated Press | ||
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Evita e Perón em trajes de gala, na Casa Rosada, em Buenos Aires, em foto sem data |
Para Federico Finchelstein, da New School, de Nova York, "Evita continua sendo mais mobilizadora do que Juan Perón, como também acontecia quando ela estava viva. Evita é uma lenda, um mito, cujo uso muda com o tempo e justifica distintas políticas. Foi usada nos anos 70 pelos montoneros, mas também pelos neofascistas da Triple A [esquadrão da morte que atuou durante o governo de Isabel Perón, nos anos 70]. Mas a forma de fazer política continua sendo a mesma. Para o populismo, o passado é sempre uma desculpa para justificar o presente".
Especialistas atribuem ao forte carisma pessoal de Cristina seus altos índices de aprovação neste final de governo. Seus 50% de aprovação são superiores aos índices de alguns de seus colegas da região, como a chilena Michelle Bachelet, o colombiano Juan Manuel Santos e a brasileira Dilma Rousseff.
"A principal razão desse número é Cristina mesmo, é mérito dela e de seu carisma em manter-se popular com os números macroeconômicos indo contra", diz o analista político Patrício Giusto.
Por superstição, jogo de marketing ou ideologia, muitos políticos e suas mulheres tentaram colar-se à imagem de Evita em suas campanhas eleitorais.
Não é por acaso, portanto, que a favorita para ser a próxima primeira-dama da Argentina, a ex-modelo Karina Rabolini, vem exibindo nos últimos meses um coque à la Eva e reforçando a propaganda do marido, o peronista Daniel Scioli, dando publicidade a seu amplo trabalho de caridade no "conurbano" de Buenos Aires.
Natacha Pisarenko - 10.ago.2015/Associated Press | ||
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Daniel Scioli e sua mulher, Karina Rabolini, um dia após as eleições primárias |
Há alguns meses, participou da promoção do livro "Eva Perón y su Obra", do historiador Pablo Vázquez, e desconversou. "Não tenho tempo de ir ao cabeleireiro, e esse penteado é mais prático", disse, mas admitiu que admira a líder peronista e se identifica com ela.