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'Rejeitar refugiados é abolir uma vida diferente da sua', diz Laura, 10 anos

FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Como Mafalda é uma das personagens favoritas de Laura, foi com um broche da menina contestadora criada pelo argentino Quino espetado na camiseta que ela chegou para a entrevista. Não era um broche qualquer. Da boca de Mafalda saía um balãozinho: "Fora, Temer!".

Aos 10 anos, Laura Albergaria Guedes da Fonseca está no quinto ano do ensino fundamental no colégio Equipe, em Higienópolis, região central de São Paulo. Se dependesse dela, a política nacional seria o tema dominante da entrevista –e o assunto, para a desgraça do presidente da República, acabou sendo abordado. Mas o foco, como ela só veio a saber na hora em que a conversa começou, era outro –política internacional, mais especificamente a crise dos refugiados.

De início, Laura mostrou desconforto e disse que pouco sabia sobre o tema. Bastaram uns minutos para que expressasse ideias claras e posições assertivas a respeito do maior problema humanitário da atualidade.

Filha de professores, Laura mora com os pais, uma irmã mais velha, um irmão gêmeo, duas cachorras (Nêga e Lola), dois gatos (Pingo e Estrela) e uma tartaruga (Dorothy) num apartamento em Higienópolis. História, ciências e geografia são suas matérias preferidas. No tempo livre, gosta de passear no centro de São Paulo ou ir no Aquário do Ipiranga. Pensa em ser médica neurologista. "Meu sonho é meio impossível... na verdade eu queria... todo mundo pensa em ler mentes algum dia... eu sei que é impossível. Mas eu gostaria de tentar fazer isso. Tentar."

Como você se informa do que acontece no Brasil e no mundo?
A minha irmã me contava desde pequena essas coisas, desde uns seis, sete anos... As notícias atuais eu acompanho bastante com minha mãe e com meu pai. Não leio jornal junto com eles, mas quando acontece alguma coisa muito importante, muito marcante, eles me contam. E aí eu procuro perguntar pra outras pessoas, pra confirmar se é verdade o que estão me contando ou se eles estão diminuindo a potência, ou fazendo alguma coisa pra não ficar tão pesada ou contando do jeito certo.

Você vê diretamente notícias em algum lugar, TV, internet?...
Vejo, não sozinha. Mas às vezes acompanho meu pai vendo "Jornal Nacional". Também com minha avó materna, quando vou dormir lá, pra ver a novela a gente tem que terminar o "Jornal Nacional". Então vejo junto com ela e conversando um pouco.

Você costuma ver crianças dando opinião na imprensa, na TV?
Não muito, porque crianças não aparecem no "Jornal Nacional" falando. Eu vejo os âncoras do jornal falando e jornalistas mesmo escrevendo uma notícia nos jornais, lendo a notícia deles...

Você acha que a voz da criança deveria aparecer mais nos meios de comunicação?
Acho que era legal, sim. Porque os adultos são da antiga geração, as crianças são novas, a gente está aprendendo coisas diferentes, por conta própria –por opinião também deles [adultos]–, mas acho que seria legal. Para ver como [a criança] vai crescendo, como vão passando as décadas e as opiniões mudam.

Tem um tema que tem aparecido muito no noticiário, que é o da crise dos refugiados. Você sabe o que são refugiados?
Refugiados não são quem foge do país deles? Alguma coisa assim... eu não sei. Não tô vendo muito isso... Acompanho mais o Temer, o Doria, o Trump, esses políticos atuais...

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 15-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas.Painel feito por alunos do 5o ano afixado na sala de aula onde estuda a garota Laura Albergaria Guedes da Fonseca, 10 anos, do Colegio EQUIPE. (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Broche de Laura Albergaria Guedes da Fonseca, 10, com a personagem Mafalda dizendo: "Fora, Temer!

Sabe o que leva alguém a, como você falou, fugir do seu próprio país?
Porque elas não têm boas condições de vida. E outra, às vezes elas passam por muitos maus-tratos, muito preconceitos. Porque o refugiado, pelo menos o que eu acho, são pessoas de classes mais baixas, que têm que fugir do país delas para poder viver melhor.

Há também outros motivos, como guerras ou perseguição... Você já viajou para fora do Brasil?
Já, uma vez para Londres.

Pra passear?
É, pra passear.

Você gostaria de morar fora do Brasil?
Gostaria. Gostaria de morar em Londres porque, pelo que eu vi, eles tratam muito melhor a criança lá. Eles dão coisas de graça pra gente, eles param mais o carro pra gente passar. Eles são mais gentis. E também, pela situação que está aqui no Brasil... com certeza [gostaria de morar fora].

Que situação é essa, por que você está desiludida com o país?
Na minha opinião, por causa da reforma trabalhista, que vai acabar com muuuuita coisa do país, e coisas boas dos direitos dos trabalhadores, e o que não falta no país são trabalhadores. Por causa da reforma trabalhista, que já é um motivo bem grandinho, né.

Isso te motivaria ou poderia motivar outras pessoas a querer sair do país?
Sim, porque vamos dar um exemplo: alguns direitos que os trabalhadores conseguiram vão acabar e vão prejudicar muitas pessoas. E aí isso é um motivo bem grandão pra sair. Grávida, por exemplo, vai poder ser exposta a produtos químicos. E acho que é um motivo para sair.

Você diz que a situação aqui não está muito boa, mas você gosta de morar no Brasil de maneira geral?...
É... [desanimada]

Como você acha que deve se sentir uma pessoa que gosta de seu país mas é forçada a morar fora?
Quando ela não gosta do país dela, deve estar passando por coisas muito ruins. Ela quer morar fora, mas acontece que tem muita gente que quer morar fora, mas não tem muito dinheiro pra isso. Sei lá, a pessoa deve se sentir mal pra caramba. Eu não sei, eu não tenho a menor possibilidade de me mudar de meu país, porque minha família não quer se mudar do país.

Sabe de que países há refugiados hoje em dia?
Acho que sei de um, que são refugiados da Síria. É uma hipótese, mas tenho ouvido falar muita coisa da África também. Tem refugiados de lá?

Sim, seja por questões de guerra ou de fome... Queria te mostrar umas imagens [mostra foto de barcos com refugiados africanos cruzando o Mar Mediterrâneo] perto da costa da Líbia. O que você acha que mostram essas imagens?
Na primeira imagem, tem um barco com pessoas, e poucas estão com coletes. Não é nem um barco, é um bote... Tem uma pessoa jogando coletes. Na segunda imagem, o barco deve ter virado, porque nem era protegido, tem pessoas nadando, tentando se salvar?

Você imagina por que as pessoas estão numa situação dessas?
Acho que estão querendo sair do país, atravessando o mar. E eu também reparei que são todos negros, não sei se são africanos. Tipo, sair pra vir pro Brasil...

O que leva uma pessoa a entrar num bote assim para enfrentar uma travessia perigosa?
Quando a gente sai do nosso país, geralmente a gente sai de avião. E acho que as pessoas não tinham como ir de avião, mas elas tinham que sair do país e aí elas foram de barco mesmo, atravessando o oceano. Mesmo sabendo o que podia acontecer [na travessia], elas acharam melhor do que ficar sofrendo no país delas.

Você já conheceu algum refugiado?
Não.

Tem algum amigo ou conhecido que tenha contato com algum refugiado, já ouviu falar?
Hmmmmm... [pensativa] Se eu não me engano, a minha amiga Gabi, que a mãe dela é assistente de diretoria de uma escola, ela comentou que tinha recebido uma vez refugiados da Síria como estudantes. Mas eu não sei se recebeu mesmo, mas eu acho que sim, porque ela comentou.

Você acha que o Brasil deveria receber refugiados de outros países?
Sim, porque quando uma pessoa está refugiada a gente tem que ajudar ela a se encaixar no nosso país e recebê-la de braços abertos, sem nenhuma crítica, sem nenhum preconceito. Porque a pessoa que está refugiada está sem condições de viver no seu país e vem, por exemplo, pro Brasil porque acha que o Brasil vai estar melhor. Então tem que estar melhor mesmo, e não ficar pior que o país dela.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 15-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas.Painel feito por alunos do 5o ano afixado na sala de aula onde estuda a garota Laura Albergaria Guedes da Fonseca, 10 anos, do Colegio EQUIPE. (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Emily, ratinho de pelúcia da estudante Laura Albergaria Guedes da Fonseca, 10

Você acha, e aí não falo só do Brasil, que os refugiados podem acrescentar coisas boas aos países onde elas chegam ou acha que podem trazer problemas aos países onde elas chegam?
Com certeza acrescentar coisas boas. Porque, tipo, o que é o Brasil? Várias pessoas de culturas diferentes, imigrantes, criaram a nossa cultura. Então eles [os refugiados] vão trazer coisas muito boas de a gente aprender aqui e melhorar aqui. Lógico que vão trazer coisas boas, porque eles vêm pro Brasil com essa esperança, então acho que não vão piorar [o país]. Acho não, tenho certeza.

Outro dia teve uma confusão na avenida Paulista, uma briga entre dois grupos: um grupo era contra os refugiados, protestava contra uma lei que facilita a entrada de imigrantes no país; o outro grupo era formado por imigrantes e defendia que pessoas de fora fossem acolhidas. Qual desses grupos você apoiaria?
Os que estão protegendo os imigrantes, logicamente. Acho que todo mundo tem que ficar desse lado, porque do outro lado, mano, é praticamente você abolir uma vida diferente da sua e rejeitar isso. Tipo: não, só as coisas da minha nacionalidade e das minhas perspectivas valem.

Você gostaria de estudar na escola com colegas de outro país?
Sim, seria legal, porque, no Brasil, quando a gente vai contar uma coisa pra outra pessoa, tipo, não tem muito essa coisa de novidade, ou cultura muito diferente ou costumes muito diferentes do outro. Porque todo mundo vive e vê essas coisas no Brasil. Então seria muito legal, porque aí ele ou ela ia me contar da vida, eu ia contar da nossa vida, aí a gente podia, tipo, pegar os costumes deles e eles pegarem do meu, e aí a gente construir uma outra alternativa de vida.

Você acha então que um país, uma sociedade, é mais bacana com várias culturas e nacionalidades misturadas do que somente com a cultura do povo daquele lugar?
É, eu acho, porque tem essa coisa... ser todo mundo igual é muito chato, mano. Imagina, ser só você, você não ia conversar com ninguém, todo mundo ia ter as mesmas opiniões. Tipo, é gostoso às vezes um debate. Claro que um debate quando a gente tá todo mundo são, sem briga nem nada. Mas... sim, seria muito melhor todo mundo junto, vários países juntos, tal. Porque aí, se todos os países ficassem mais juntos, pelo menos na minha esperança é que não tenha tanta guerra. Se todos os países se juntarem, cada um ajuda o outro.

O que diria para uma criança que é obrigada a morar fora de seu país?
Eu ia falar: ah, agora já passou, você não vai mais passar por isso, agora você está com a gente. A gente não vai deixar mais que isso aconteça com você. Então não fica tão triste, tipo, passou essa etapa.

Se você fosse obrigada a se mudar, de que mais sentiria falta do Brasil? O que você acha que diferencia o Brasil de outros países, que é uma marca do nosso país?
A primeira coisa que eu sentiria muita falta seria dos meus amigos, da minha família. Mas eu também sentiria falta meio que dos passeios, porque os passeios são diferentes dos dos outros lugares, por exemplo, de ir no Pátio do Colégio, que eu já fui e que é muito legal. Dessas coisas que tem no Brasil, porque o Brasil passou também por esse processo de ter vários passeios, igual aos outros lugares. [Sentiria falta] Da cultura, do jeito de comer...

De qual comida você sentiria falta?
É que minha mãe sempre comeu arroz e feijão, então acho que sentiria mais falta do arroz, do feijão e da carne. Porque quando eu fui pra Londres o feijão era meio rosa... e aí eu não gostei não.

Você acha que as crianças precisam de uma atenção especial?
Sim, porque os adultos já viveram, não só viveram a vida, eles conseguem um pouco mais defender seus direitos. Tipo, alguém faz uma coisa ruim pra você, a criança ela vai ficar meio sem saber o que fazer. E outra, não entender se isso é ruim mesmo e fazer alguma coisa. E também não ter opinião política, feito a gente estudou no quinto ano sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Tem uma organização chamada ONU, Organização das Nações Unidas. Você já ouviu falar?
Organização das Nações Unidas... que são vários Estados que se juntaram?...

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 15-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas.Painel feito por alunos do 5o ano afixado na sala de aula onde estuda a garota Laura Albergaria Guedes da Fonseca, 10 anos, do Colegio EQUIPE. (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Livros escolhidos pela estudante do colégio Equipe para mostrar à reportagem

Isso, vários países... Você sabe o que a ONU faz?
Eu não sei, mas eu só sei uma coisa que acontece nos Estados Unidos... acho que é nos Estados Unidos... que, tipo, cada país [Estado] se resolve de um jeito: alguns têm uma lei que vale só para aquele país, e outros não.

A ONU é mais ou menos assim, mas é com nações do mundo inteiro. Os países ficam ali discutindo para tentar resolver os problemas do mundo, problemas que dizem respeito a vários países. Se tivesse um presidente do mundo inteiro, o que ele deveria fazer? Se você fosse presidente do mundo, o que você faria?
A primeira coisa... eu ia conseguir moradias novas pra todo mundo... não pra todo mundo, mas para aquelas que estão muito caídas, muito pequenas e ruins. Eu ia tirar esse conceito de a gente chamar "favela", eu ia tirar esse nome que a gente chama, porque seria tudo igual, todas as casas boas. Eu também ia fazer algumas coisas ecológicas, tipo despoluir o rio Tietê, fazer essas coisas assim. Com certeza eu ia dar bolsa ainda e ia recuperar... porque, pelo que eu ouvi, tipo.. que eu quero ser médica... e eu falei que eu acho que eu gostaria de viver de pesquisa, ganhar uma bolsa do governo e viver só pesquisando. E aí minha mãe falou que talvez isso não aconteça. Eu ia dar bolsa pra todos. Eu ia tirar essa coisa de pessoas terem mais, muito mais dinheiro do que as outras, essas coisas. Na verdade eu queria fazer uma coisa impossível, tirar o dinheiro. Porque, se tirasse o dinheiro, não teria pessoas mais ricas que as outras; as pessoas escolheriam o trabalho porque elas gostam, não porque elas precisam de dinheiro. Todo mundo poderia ir pra faculdade, pras escolas...

Você aboliria o dinheiro?
Sim. Eu também faria essa coisa, tipo, um homem e uma mulher trabalham no mesmo cargo, e ele ganha muito mais que ela... e essas coisas... É, aboliria todo tipo de preconceito. Aboliria o dinheiro e todas essas classes sociais em que a gente vive. Porque esse é um problema mundial: se tem uma pessoa das classes trabalhadoras, média e alta é o problema, porque a gente divide a população, faz com que elas fiquem só num grupo ou que não se misturem com as outras. É, eu faria isso.

Teus pais são pesquisadores?
Não. Meu pai trabalha numa escola [faculdade] chamada Faap, que ele ensina coisa de fotografia, e tal, e ele também é diretor do Alef, que é uma escola judaica. E minha mãe é professora de língua portuguesa –agora ela está sendo coordenadora, mas vai mudar pra professora– no Alef também. Mas eu nunca tive muita vontade de dar aula em faculdade e nem... queria até atender pacientes. Precisa ter pessoas atendendo os pacientes, mas é que eu não gosto muito, porque eu queria pesquisar uma coisa que realmente seja legal... Não, não que não seja legal isso [atender pacientes], mas, pra mim, porque eu queria ser neurologista.

Neurologista?
Sim. E às vezes vem casos de pacientes muito repetidos e eu queria, tipo, criar uma lógica nova ou fazer alguma coisa diferente. Tipo... Na verdade, meu sonho é meio impossível, na verdade eu queria... todo mundo pensa em ler mentes algum dia... eu sei que é impossível. Mas eu gostaria de tentar fazer isso. Tentar.

O que você mais gosta de estudar na escola?
História, ciência e geografia.

E fora da escola, de que você mais gosta?
Gosto de ir na piscina, gosto de... é que não tem muita brincadeira definida... Passeios eu gosto de passear no centro, porque tem várias construções legais lá. E ir no Aquário de São Paulo.