Educação

'Tem coisas que a escola não ensina, a gente aprende na vida', diz Beatriz, 11

PAULO SALDANA
DE SÃO PAULO

Para Beatriz, a escola tem se saído bem naquilo que é essencial. Mas ela pontua: "Tem coisas que a escola não ensina e a gente aprende sozinha, na escola da vida".

Beatriz Eduarda de Almeida Moraes, 11, mora no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo, e estuda mais para o extremo da região, no Jardim Romano. Está no 6º ano na escola municipal de ensino fundamental do CEU Três Pontes, um conjunto que envolve escolas e um complexo esportivo com piscina. Educação foi o tema escolhido para essa entrevista.

Segundo Beatriz, a escola tem obrigação de não impor limites sobre quaisquer temas. "Se a gente não procurar, se não tiver as perguntas, a gente não vai saber de nada. Vai ficar com a cabeça travada", explica. Política, gênero, religião, racismo e machismo são assuntos que ela quer no colégio e sobre os quais tem opiniões. Ela também fala sobre o formato das aulas, bullying e a necessidade de ser ouvida como criança.

A mãe de Beatriz é controladora de acesso e o pai, maquinista. Seu sonho é cursar faculdade de teatro, fazer peças, atuar na televisão. "O céu é o limite. Eu posso fazer tudo que eu quiser", diz ela, lembrando lições da família.

Você gosta de vir pra escola? O que te motiva?
O que me motiva vir pra cá é pelo conhecimento. Como eu quero fazer faculdade, meu pai e minha mãe falam que tem que estudar muito pra conseguir o que eu quero. Porque eu não vou conseguir as coisas num passe de mágica.

Você planeja continuar estudando depois da escola?
Eu quero fazer faculdade de teatro. Eu sempre gostei disso e na minha outra escola [que ela frequenta à tarde] sempre puxou mais pro lado da arte. Eu sempre gostei desse negócio, de atuar... Eu sempre atuava em casa, fazia show de teatro pra minha mãe.

De onde você tira as informações que discute no dia a dia com seus colegas ou na sua casa?
Da minha outra escola, fala sobre tudo, fala sobre política, mesmo que a gente seja pequeno e não entenda muito. Elas gostam de entrar nesse assunto porque é muito importante. Se a gente não souber o que está acontecendo na política, como vai pedir nossos direitos? Como vai reclamar de alguma coisa sendo que a gente não sabe de nada? E eu também vejo na internet e pergunto pros meus pais, porque eles sabem de muita coisa. Uma vez, a professora de ciências estava falando sobre as pessoas transgêneros e que elas têm de tomar remédios pra ficar como querem. Eu entendi o que ele estava falando, mas eu queria me aprofundar mais. E comecei a ler na internet que as pessoas transgêneros são agredidas e eu achei isso muito errado. E eu comecei a procurar mais, pra saber o que está acontecendo. Porque se a gente não procurar, se não tiver as perguntas, a gente não vai saber de nada. Vai ficar com a cabeça travada.

Você falou de transgêneros. Você acha que a maioria das pessoas faz como você e procura saber mais sobre isso?
Existe muito preconceito com pessoas transgêneros, com quem não gosta de si mesmo. E as pessoas, em vez de perguntar, elas só querem julgar. Porque todo mundo é como a gente, eles têm sentimentos, não dá pra ficar julgando uma pessoa. Isso é muito errado.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 21-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas. Detalhe de anotacoes de aula de ingles de um dos alunos do 6o ano no colegio do Ceu emef Tres Pontes, no bairro Jardim Romano, onde estudam as alunas Vitoria Railene Santos e Beatriz Eduarda A Moraes (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Beatriz Eduarda de Almeida Moraes, 11, mostra o anel que usou no dia da entrevista

Como conscientizar as pessoas?
Ter uma conversa com essas pessoas, falar como elas [transgêneros] se sentem. Colocar a pessoa ao contrário. 'Se você fosse uma pessoa que não se identificasse com seu próprio gênero, e todas as pessoas ficassem te julgando pelo jeito que você é, pelo jeito que você faz as coisas.' Eu acho que as pessoas iriam se conscientizar.

Você acha que política, religião, são temas para discutir na escola?
Eu acho que tem, sim, que discutir isso. Na escola da minha prima, ela tem aula de religião, acho legal. Porque a minha prima fala que na aula de religião todo mundo passa (risos). E acho legal conversar sobre isso e influenciar os jovens a ir pra igreja e encontrar o caminho de Deus. Não que eu diga que é obrigatório todo mundo, né, porque vai da consciência.

Vi que seu brinco remete à cultura africana. E com relação a outras religiões, a escola consegue trabalhar também? Como a escola poderia trabalhar isso?
A professora de artes e história falam bastante. Eu acho que a escola, os professores, deveriam retratar mais sobre esses assuntos de religiões. Não só católica e evangélica, mas espírita, igrejas americanas, igrejas africanas. Porque é cultura, e tem muita coisa pra gente trabalhar e não abre esse assunto.

Por que você está usando esse brinco?
Porque eu gosto bastante da cultura afro-americana. E também resgata as minha raízes, porque a minha família de parte de mãe é africana. E da parte de pai é mais para o lado dos índios e portugueses.

Você tem orgulho do seu cabelo, da sua cor de pele?
Antes eu não tinha orgulho de mim. Eu achava que minha pele era feia, que meu cabelo era ridículo. Sempre aquele padrão social, da menininha branquinha, com cabelos lisos. E comecei a sofrer bullying na escola. Aí minha madrinha chegou pra mim e disse: 'Você tem que se orgulhar do que você é'. E me indicou umas músicas, pra eu poder sair dessa crise. Aí comecei a me aceitar mais. E minha tia é branca, mas ela gosta muito da cultura afro. E ela falava que acha os africanos mais lindos que os branquinhos. Ela fala que o cabelo cacheado é um dos mais bonitos que tem. Porque ele é diferente, ele é muito bonito. A nossa pele, a etnia das pessoas, ninguém pode julgar. E acho que é muito legal descobrir mais culturas e não ficar julgando. E se você gostar, faça como eu e valorize o que você tem.

Como você consegue passar a importância dessa valorização para seus colegas, inclusive para os que fazem o bullying?
Para os que fazem o bullying eu digo pra não fazer isso porque você não sabe como está a saúde emocional da pessoa. A pessoa talvez não goste dessas brincadeiras idiotas. Se a pessoa vem e fala: 'Seu cabelo é feio e devia ser liso', é hora de perguntar: por que tem de ser liso? Você tem algum preconceito com o meu cabelo? E mesmo se você tiver preconceito, o problema não é meu e não me atinge isso. Tem uma menina da minha sala que os meninos ficavam chamando ela de apelidos chatos. Ela é parecida comigo, a pele escura, cabelos cacheados, os olhos castanhos. Ai eu falei pra ela que tem que se aceitar do jeito que ela é, e não ouvir a opinião dos outros.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 21-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas. Detalhe de anotacoes de aula de ingles de um dos alunos do 6o ano no colegio do Ceu emef Tres Pontes, no bairro Jardim Romano, onde estudam as alunas Vitoria Railene Santos e Beatriz Eduarda A Moraes (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Beatriz Eduarda exibe brinco que remete à cultura africana

Você está comentando esses casos aqui na escola. Você acha que a escola é um ambiente violento? Esses casos de bullying são normais ou foram exceção?
É bem frequente esse negócio de bullying, não mais comigo. Porque as pessoas dizem e eu não me importo muito. Mas na escola deve ter muitas pessoas que sofrem bullying e ficam com depressão. E não é só pelo fato de ser negro, etnia... Se a pessoa é muito magra, julga que é muito magra. Se a pessoa é um pouco mais gordinha, aponta o dedo na cara dela e diz 'você tem que emagrecer'. Se a pessoa tem cabelo cacheado, julga porque tem cabelo cacheado. Se tem cabelo liso, julga pelo liso. E acho que as pessoas devem parar de julgar e tomar conta mais do seu.

Vi uns cartazes aqui na escola sobre violência contra a mulher. Vocês que fizeram? Vocês têm discutido esse tema entre os colegas?
Na verdade, não foi a gente que fez, foi o pessoal do 8º ano. Mas a gente discutiu no Dia da Mulher sobre a fábrica que foi incendiada por machismo que fizeram com as mulheres. Eu acho isso muito errado. Os homens não devem ter mais direitos que as mulheres, porque são iguais.

Você é uma menina negra, que me contou que tem orgulho de quem é. Você vê outras crianças falando sobre esses temas na televisão?
Na TV passa algumas crianças falando, mas é sempre aquele padrão. Aquela menininha branca, bonitinha, de cabelos loiros, olhos azuis. E esse padrão vai se repetindo e as pessoas vão vendo isso e vão julgando as outras. Acho que a televisão devia passar mais sobre o que as pessoas são de verdade e não ficar entre esses padrões.

Você acha que a opinião das crianças são ouvidas e respeitadas?
Não muito. Porque quando a gente fala, vai conversar com o adulto que entende, ele diz: 'O que você vai entender disso? Você é uma criança. Você não tem que se meter nesses assuntos. Isso é assunto de adulto'. E não existe esse tipo de 'assunto de adulto', não que eu diga todos, né, mas entre política, ações sociais, acho que as crianças deveriam ser mais ouvidas. Porque todo mundo deve ser ouvido.

E na escola? As crianças são ouvidas?
Não muito. A professora de história passou uma papelzinho e mandou escrever o que a gente podia fazer pela escola e como as aulas dela podiam melhorar. Eu achei isso muito legal. Ela percebeu que a gente queria ter mais coisas, passar mais conteúdos, fazer aulas mais legais, dinâmicas. Eu acho legal porque a professora vê a gente e tenta resgatar o que a gente está pensando. E não só o que a diretoria e as outras pessoas pensam.

O que você escreveu? Qual foi sua sugestão?
Eu escrevi que deveria entrar mais nesses assuntos, né. Assuntos mais importantes, queria que trabalhasse também mais com esse lado dos primatas, pra saber um pouco mais, fazer mais dinâmicas com a gente. Pra gente descontrair um pouco das aulas, pra não ficar sempre a mesma coisa.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 21-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas. Detalhe de anotacoes de aula de ingles de um dos alunos do 6o ano no colegio do Ceu emef Tres Pontes, no bairro Jardim Romano, onde estudam as alunas Vitoria Railene Santos e Beatriz Eduarda A Moraes (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Bandana utilizada pela aluna da escola Três Pontes, no bairro Jardim Romano

Você acredita que aquilo que aprende na escola é útil? Que nota você daria nesse quesito?
Eu dou nota 8. A escola ensina bastante coisa, eu admito, mas tem coisas que a escola não ensina e a gente aprende sozinha, na escola da vida mesmo. A vida vai ensinando pra você. Eu não digo tudo, porque na escola ajuda bastante pra ter o primeiro ensino, ler, escrever, fazer matemática, conta. No essencial da escola, eles estão se saindo muito bem.

Na aula que eu acompanhei, vocês estavam discutindo entre si, sentados em roda, a peça "Os Miseráveis". Você gosta desse tipo de aula?
Gosto bastante. A professora Priscila, de história, em vez de ficar passando muita lição, ela vai lá e conversa com a gente. Faz um debate. Aí ela fala sobre os primatas, sobre a evolução humana, e a gente vai debatendo, perguntando o que é isso. Ela vai explicando com a gente. Ela quer ver mesmo, no resumo da ópera, se a gente entendeu.

Você acha que aprende mais assim?
Aham, muito mais. Porque escrever até um analfabeto escreve. É só copiar as palavras e não entende nada. Eu gosto daquelas professoras que já pega firme e pergunta: 'Você entendeu mesmo? Então me explica'.

Como você se vê daqui a dez anos? O que sonha?
Eu sonho fazer faculdade de teatro, fazer peças, trabalhar na televisão, não quero ficar me prendendo numa coisa só. Pra mim, o céu é o limite. Eu posso fazer tudo que eu quiser. Eu posso fazer faculdade de teatro, depois fazer faculdade de biologia. Posso fazer muitas coisas. E o que você gosta de fazer, você faz e corre atrás.

Qual foi o lugar mais longe que você foi em São Paulo?
Eu já fui no centro, mas não sou muito de sair. Minha mãe e meu pai trabalham muito. Não dá pra sair muito, só nessas férias que a gente saiu um pouquinho pra ir no cinema. Eu gostaria de conhecer mais coisas.

E se você conhecesse mais coisas seria mais fácil pra você conseguir o que quer, pra conquistar seu sonho?
Com certeza. Isso é pra vida, o que a gente aprende nos lugares, saber sobre as culturas, sobre tudo né. Saber onde foram os maiores acontecimentos da história, acho que é muito legal poder viajar e saber mais sobre o que acontece, tipo a biografia de pessoas importantes que já passaram por lá.

Você acha que tem gente com mais chances que você?
Com certeza, tem gente que tem mais chance do que eu. Na escola tem gente que tem mais por conta da inteligência, tem crianças com melhores condições financeiras do que eu, tem chance de estudar em melhores escolas, em escolas particulares. Meu pai disse que escola particular é bom, mas a gente pode conseguir a mesma coisa se estiver na pública. Se a gente tiver força de vontade, tem como ter uma bolsa de estudos se tiver bastante esforço. Meu pai disse também que, se a gente levar tudo na moleza, já ganhar tudo na hora, não vai ter experiência na vida. Vai ganhar tudo na mão e se a pessoa faltar, um dia, ela não vai saber como se virar.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 21-08-2017: Especial Superpauta Criancas. Serie de entrevistas com criancas. Detalhe de anotacoes de aula de ingles de um dos alunos do 6o ano no colegio do Ceu emef Tres Pontes, no bairro Jardim Romano, onde estudam as alunas Vitoria Railene Santos e Beatriz Eduarda A Moraes (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS).
Quadra de esportes da escola Três Pontes, no Jardim Romano, onde Beatriz Eduarda estuda

Me fala um pouco sobre o lugar onde você mora.
Não é um lugar muito bonito, porque não tem muitas árvores, e gosto de lugar que tem muitas paisagens de árvores, mais culturais. Queria que tivesse mais coisas, centros culturais, lugares pra fazer teatro. A única coisa que tem é a igreja, a escola que eu vou, academia, as únicas fontes que a gente tem. Quando vai sair tem que ir o mais longe possível, tenta ir para um lugar mais aberto.

Lá é um lugar calmo ou é violento?
Não é muito violento, mas tem muito assalto e muita biqueira de drogas. Na hora de ir de manhã [pra escola], e meu pai e minha mãe estão trabalhando, eu deixo o portão trancado. Só saio e entro na perua, direto. E evito de ficar olhando pra outras pessoas que não ficam lá muito tempo. Porque de dia é uma coisa, mas à noite vejo pessoas que nunca vi na vida. Minha mãe tem medo de eu sair na rua porque essa semana uma moça tinha sido assassinada por causa de um celular. Ela ficou enrolando pra pegar o celular e acabaram matando ela. E meu pai está com muito medo de sair, sempre fica na esquina olhando.

Mas você gosta de morar no seu bairro?
Acho legal onde moro, tem bastante vizinhos, e eu gosto dos meus amigos. Se o governo investisse mais, seria um lugar muito bom pra viver. A dificuldade é poluição. Sempre tem festinhas, e quando a gente passa está tudo sujo, papel, copo, coisas jogadas no chão, muito nojento. E cada esquina tem muita gente usando drogas e os policiais não fazem nada. Não querem levar essas pessoas para centros, pra se tratarem. E tem muito baile funk à noite quando a gente vai dormir, enche o saco.

Tem muito baile funk perto de onde mora? Como agir?
Tem bastante, mas não é só baile funk, não. Tem também uma igreja do lado que faz muito barulho. Mas, tipo assim, é uma igreja! Como é que está fazendo tanto barulho assim? O que eles estão fazendo? [risos]. À noite, quando a igreja está pegando muito fogo mesmo, a minha mãe liga pra polícia, porque a gente não aguenta mais. A gente fica meio acanhado porque é igreja e eles estão orando. Eu acho legal eles conversarem com Deus, e tal, mas... fala baixinho, porque louvar é de cada um. Acho que eles deviam ter mais consideração.

Você frequenta a igreja?
Eu frequento. A Igreja Católica São José. Eu gosto bastante, sou coroinha. Eu faço catequese. Está sendo muita dificuldade porque é muito assunto. A gente vai fazer a primeira eucaristia em outubro e se confessar para o padre, e todo mundo está com medo (risos).

Você tem muitos pecados pra se confessar?
Ah, não é muuuito, só que às vezes a gente fica com receio de contar nossas coisas lá do fundo pra alguém. Mas a catequista disse que ele não pode contar pra ninguém, então já alivia um pouco.