De olho no RJ, facção faz aliança, vira fornecedor e fortalece ação na divisa
ROGÉRIO PAGNAN
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
No final do ano passado, moradores mais antigos da Rocinha, no Rio, notaram a presença de pessoas estranhas à comunidade reunidas com os "donos do morro". Eram os "paulistas", tratados com deferência e que contavam suas façanhas no centro de rodas animadas a música, cerveja e drogas. "Os meninos ouviam admirados as histórias contadas por eles, de grandes crimes", narra um morador que presenciou a festa. Os "paulistas" retornaram ao morro outras vezes, mas sempre com a ordem de estarem desarmados.
Essa primeira reunião, dizem moradores, selava a aliança iniciada nos presídios fluminenses entre o PCC e criminosos da ADA (Amigos dos Amigos), a segunda maior facção criminosa do Rio, dona do tráfico na Rocinha e inimiga histórica do CV (Comando Vermelho). Ali, a quadrilha paulista se aliava aos inimigos de seus inimigos.
A ADA surgiu na década de 1990 com a união de grupos criminosos locais, acordo que inspirou o nome Amigos do Amigos. Atualmente, segundo dados do Ministério Público do Rio, os criminosos controlam ao menos 22 regiões da cidade, sendo a principal delas a favela da Rocinha. O mais famoso chefe do grupo é Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, dono da Rocinha, que está preso desde de 2011.
A aproximação entre PCC e ADA vinha sendo desenhada desde 2015, quando a guerra com o CV estava se tornando inevitável. Em carta apreendida pela polícia paulista, a aliança com os Amigos dos Amigos era apresentada como opção de acordo no Rio até por causa da admiração que esses criminosos tinham entre si.
"Quero deixar vocês cientes que temos como companheiros que fecham no dia a dia, com nós e nunca deram qualquer problemas para nós e admiram nossa ideologia e respeita nossa disciplina", diz mensagem apreendida na Operação Ethos, da polícia paulista.
No meio do ano passado, a Polícia Civil do Rio de Janeiro notou problemas na relação entre CV e PCC quando a quadrilha liderada por Marcos Camacho, o Marcola, iniciou uma campanha de cooptação de integrantes da facção inimiga em cidades do interior, em especial naquelas próximas à divisa de Rio e São Paulo.
Uma série de telefonemas gravados mostrava um empenho total do PCC nessa empreitada, tarefa capitaneada por um representante deles no Rio, Cledson Fernandes da Silva, o Léo ou Fantasma, que narrava em conversas ter elevado de 15 para 80 o número de criminosos "batizados" por ele naquele ano. "O CV vai se foder", disse ele a um de seus comparsas ao telefone. "Não é para falar que estamos roubando os soldados deles."
As conversas chamaram a atenção dos policiais. Tratava-se, naquele momento, de facções parceiras no Rio: CV e PCC. "Se sou seu aliado, como quero cooptar seus integrantes pro meu lado? Isso não era normal", diz o delegado Antenor Lopes Martins Júnior.
Meses depois, haveria o rompimento entre as facções. Os criminosos do PCC foram transferidos do complexo prisional de Bangu para alas de convivência com a ADA. Só não foram autorizados a realizar "batismos" de novos integrantes. Esse afastamento faz sentido para especialistas em crime organizado no Rio, já que a forma de atuação do PCC mais se parece com a de inimigos do CV.
"Por uma série de problemas, e não foi um problema específico, o PCC começou a se afastar do CV. Até pela própria maneira de ser do CV, que é uma facção de guerra, um facção beligerante. Eles são loucos. Eles querem o problema. Eles não raciocinam estrategicamente como o PCC, e até mesmo como outras facções do Rio, como a ADA. Eles querem tocar fogo em ônibus, arrastar policial para dentro da favela."
A aliança entre PCC e CV no Rio, porém, nunca teve como objetivo a divisão do controle de favelas. A maior participação da quadrilha paulista no Estado, em especial na região metropolitana do Rio, está ligada ao fornecimento de drogas. Este ainda continua sendo o papel dos criminosos do PCC nessa aliança com a ADA e assim deverá continuar por algum tempo. "É altamente improvável que isso aconteça [de o PCC dominar algum morro]", diz o coordenador do disque-denúncia do Rio, Zeca Borges.
Essa é a mesma conclusão de integrantes da cúpula da Polícia Militar do Rio, que também participam de investigações com grupos especializados do Ministério Público do Estado. Para um dos oficiais ouvidos pela reportagem, o PCC "não tem espaço no Rio", a não ser nas parcerias comerciais. Um dos sinais disso é inexistir pichações em muros com indicação do PCC. Segundo o oficial, é comum nos muros adjacentes das favelas haver inscrições das facções dominantes. Assim, se houvesse uma aliança para controle de morros, haveria, por exemplo, inscrições de "ADA/PCC", o que não existe, por ora.
A reportagem da Folha esteve na Rocinha e, com ajuda de um morador, caminhou por uma série de becos da favela. Passou por seis níveis de controle de criminosos armados de fuzis, incluindo a Rua 1, de acesso proibido a estranhos. Os aliados do traficante Nem voltaram a controlar o morro como faziam antes da instalação da UPP, a Unidade de Polícia Pacificadora. Todos os homens do tráfico tratavam de assuntos ligados à comunidade.