Mulher 2016

Análise: insurgência feminina

Gabriel Soares/Brazil Photo Press/Folhapress
Mulher em ato realizado em novembro contra proposta de mudança na lei do aborto e o presidente da Câmara Eduardo Cunha

[ CARLA RODRIGUES ]

Quando se olha uma manifestação política do alto, o que se vê são ondas de pessoas em movimento por ruas, praças e avenidas, formando um corpo quase-coeso. Ao mesmo tempo que as multidões se alinham em fluxo, também é possível ver cada um dos elementos que molda o conjunto. Desde de 2013, manifestações políticas se movimentam em ondas, não por acaso reprimidas pelo mecanismo do bloqueio. Uma fileira humana de policiais se forma com a intenção de impedir a continuidade do fluxo, como se fosse possível estancar as ondas das multidões.

Foram em ondas que os feminismos se configuraram ao longo da história, ondas de insurgência contra opressões que atualmente podemos chamar de desigualdade de gênero, denunciada na história política moderna desde o século 18 e hoje retomada pela nova geração de meninas nascidas sob o signo da igualdade de direitos.

Embora não haja diferenças formais entre homens e mulheres, cada nova geração de mulheres adentra a vida adulta sob a experiência da submissão ao poder masculino. E, apesar de todas as ondas feministas que vêm conquistando emancipação, direito ao voto, acesso ao ensino e ao mercado de trabalho formal, nós, mulheres, ainda ocupamos o lugar de subalternidade nas estruturas sociais. Nossos corpos, nossas vidas e nossas escolhas estão marcadas pelo que no início do século XX a filósofa francesa Simone de Beauvoir chamou de "condição feminina".

Há uma novidade nesta imensa onda feminista que aderiu ao movimento das ruas desde 2013, fez a chamada #primaveradasmulheres, foi para as ruas gritar #foracunha; lutou na ocupação das escolas em São Paulo; ocupou espaços públicos com a campanha #agoraéquesãoelas; organizou o movimento político #apartida, prestes a se tornar um partido feminista; mobilizou e surpreendeu as redes sociais com os relatos do #meuprimeiroassedio. A novidade está no fluxo permanente que promete seguir, seja pelas ruas, seja pelas redes, em movimentos de insurgência contra o que ainda resta de machista na sociedade brasileira.

Essa é uma tarefa permanente, porque a cada geração, novas e antigas discriminações se reencontram.Palavras de ordem de hoje ecoam as de um passado não tão distante assim, ecoam também em direção a um futuro marcado por um dos slogan de #apartidA: a revolução será feminista ou não será revolução. Isso quer dizer principalmente que os feminismos têm algo a nos dizer para além da crítica às especificidades dos machismos e das opressões de gênero na sociedade brasileira.

Os feminismos podem nos levar a romper com formas políticas arcaicas, baseadas em sistemas de representação que construíram uma democracia cujo único objetivo é se manter no poder. Como tão bem explica o filósofo francês Jacques Rancière, as democracias ocidentais - brasileira incluída - são oligarquias mal disfarçadas, destinadas a manter no comando elites econômicas, políticas e, em alguns casos, religiosas. Todos homens, brancos, patrões. É contra essas oligarquias, a favor de formas democráticas de participação direta, é contra a opressão, a favor da insurgência como palavra feminina que as mulheres estão de novo e mais uma vez erguendo a sua voz. Que venha 2016.

#PRIMEIRO ASSÉDIO

Surpresa e constrangimento. Vergonha e medo. Culpa e coragem. Tudo isso e muito mais veio à tona durante a campanha #primeiroassédio, que surgiu em solidariedade a Valentina e se tornou uma onda de narrativas de abuso sexual vividos por meninas e jovens. Do padrasto ao anônimo, do primo ao tio, do chefe ao colega, do médico ao vizinho, homens foram denunciados como violentos em histórias e mais histórias que foram invadindo as redes sociais e reconstituindo aquilo que há muito estava recalcado.

Pelas contas do Think Olga, coletivo feminista que propôs a campanha, foram 82 mil tweets sob a hashtag do #primeiroassedio. Enquanto os relatos femininos brotavam por todas as partes, muitos homens começaram a ficar envergonhados, espantados, emocionados com as descobertas das violências sofridas por suas parceiras, amigas, irmãs, primas, sobrinhas. Cada mulher que conseguiu relatar seu #primeiroassedio colocou em prática uma das importantes bandeiras de luta desde a segunda onda feminista, nos anos 1970. "O privado também é político" ganhou novo fôlego em tempo de militância nas redes sociais, renovou-se pela força com que nós, mulheres, expiamos em público uma culpa que nunca foi nossa.

Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ e autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU/Faperj, 2013)