Boyhood Bolsa Família

Dez anos depois

Famílias melhoraram de vida, mas ainda dependem de programas sociais

Alan, 15, quer ser engenheiro. Luan, 16, empresário. A irmã deles, Vanessa, 13, médica. Os pais, Pedro Silva, 65, e Micinéia, 43, se emocionam com os sonhos dos filhos.

A poucos metros deles vive a família Dumont. Ronaldo, 46, e Sueli, 42, têm nove filhos e oito netos. Não há grandes planos profissionais entre eles. Filhos e filhas abandonaram a escola e engravidaram na adolescência.

Os Silva e os Dumont habitam uma favela miserável, violenta e salpicada de lixo com o improvável nome de Sovaco da Cobra, em Jaboatão dos Guararapes (PE).

Além de morarem na mesma favela, em comum as duas famílias dependem quase que exclusivamente do governo federal. É o dinheiro do Bolsa Família e de benefícios vinculados à Previdência que as ajudaram, além de poucos trabalhos precários e bicos, a evoluir nos últimos dez anos.

Desde 2005 a Folha persegue a trajetória dos Silva e dos Dumont. No início, qualquer R$ 1 fazia diferença. Até R$ 0,50 para um pedaço de toucinho no feijão. Hoje, eles têm casas equipadas e alguma perspectiva de futuro.

Na casa dos Silva, a renda mensal de R$ 1.746 vem toda do governo. Da aposentaria por invalidez do pai (um salário mínimo; R$ 788), e de outro salário mínimo para Isaque, 3, portador de Síndrome de Down. Alan e Vanessa também recebem juntos R$ 170 do Bolsa Família.

Entre os Dumont, nove filhos e netos recebem cerca de R$ 900 do Bolsa Família. O patriarca Ronaldo é o único entre os 19 da família com emprego (temporário) de gari. Sete dos filhos entre 17 e 27 anos se viram com bicos.

A escolha do Sovaco da Cobra se deu com base na penetração acentuada do Bolsa Família no Nordeste (7 milhões de famílias; 50% do total) e nos péssimos indicadores socioeconômicos locais.

É uma área que vive alagada pela proximidade de uma lagoa. Já se viu até cabeça decepada no Sovaco, que só há alguns anos ganhou trechos asfaltados e coleta de lixo. Nas casas, predominam os "gatos" de energia e água.

DITADOS E ESCOLAS

Nas visitas nesses dez anos, a reportagem sempre colheu registros em foto e vídeo com as famílias. E submeteu algumas das crianças a leituras e ditados para monitorar a evolução escolar.

No caso da família Silva, as trajetórias de Luan e Alan foram positivas. Mas ambos, hoje na 2ª série do ensino médio, ainda têm dificuldades para escrever e compreender coisas complexas. Uma das condicionalidades para receber o Bolsa Família é manter os filhos na escola.

No último ditado, em junho, Luan escreveu "luís (e não luz) e sombra" e "emplena (tudo junto) escuridão". Com caligrafia pouco inteligível, Alan redigiu "consagrado pelos gregros" (não gregos) e "divindades infernas" (não infernais). Apesar das falhas, estão familiarizados com livros e canetas há anos.

Nas idas ao Sovaco, a reportagem também visitou as escolas. Em algumas, havia goteiras, paredes que davam choque por causa de fios desencapados em meio à umidade, bibliotecas fechadas e falta de professores em unidades com 2.000 alunos/dia.

Na escola de ensino fundamental onde Luan e Alan estudaram, a Nova Horizonte, a diretora chegou a contar que 40% dos alunos repetiam a primeira série.

Para a titular do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Tereza Campello, um dos maiores desafios adiante para o Bolsa Família é aprimorar a integração do programa com a qualidade de ensino nas escolas públicas.

Algo que também foge ao alcance do governo é o destino dos beneficiários após completarem a idade máxima no programa (17 anos).

O MDS coleciona histórias de sucesso e mais de 3,1 milhões de famílias que deixaram voluntariamente o Bolsa Família, a maioria por ter obtido aumentos na renda.

Na família Dumont, o programa foi bem-sucedido ao melhorar as condições materiais dos envolvidos. Mas limitou-se a obrigar, em troca dos benefícios, a uma escolarização precária dos filhos.

Na primeira visita ao clã dos Dumont, em 2005, dez pessoas dividiam uma casa miserável e precária. Hoje, o casal vive com alguns dos filhos em um imóvel de alvenaria com piso de cerâmica, paredes pintadas e todos os eletrodomésticos de uma casa de classe média.

"FAZER MUITO MENINO"

Mas em dez anos a família saltou de 10 para 19 membros. As adolescentes engravidaram enquanto recebiam o Bolsa Família e geraram filhos que hoje também estão no programa. São sete crianças nessa situação, filhas de mães com menos de 27 anos.

Depois de deixar o Bolsa Família, algumas entraram em outros programas federais, como o Agente Jovem, para aprender profissões em centros precários. Questionada sobre o que aprendeu no programa, Priscila Dumont, mãe de dois beneficiários do Bolsa Família, diz: "Bagunçar e fazer muito menino".

Embora com trajetórias distintas, visivelmente os filhos e netos dos Silva e dos Dumont vivem um presente melhor do que foi o passado miserável de seus pais. Graças ao dinheiro do Estado.

A partir de 2003, o Bolsa Família aglutinou várias iniciativas sociais do governo FHC (1995-2002), como Vale-Gás e Bolsa Escola. O programa saltou das então 3,6 milhões de famílias atendidas e R$ 570 milhões em gastos para 13,7 milhões (50 milhões de pessoas) e R$ 25 bilhões, respectivamente.

PROGRAMA BARATO

Frequentemente visto com preconceito, é o programa social mais barato e de maior alcance numérico no país. Do total dos gastos não financeiros da União, consome apenas 2,8% do Orçamento.

Como comparação, benefícios de um salário mínimo a quem nunca ou quase nunca contribuiu com a Previdência (como Pedro e Isaque Silva) chegam a 16%.

Outra crítica ao Bolsa Família é seu inegável poder eleitoral. Na reeleição de Lula (2006) e nas vitórias de Dilma Rousseff (2010 e 2014) a sobreposição entre suas votações nas regiões mais atendidas ficou patente.

Em uma das visitas, em 2010, a reportagem perguntou a Sueli Dumont em quem ela votaria para presidente.

"Lula", foi a resposta. A filha Késsia disse que o petista não podia mais concorrer e que "a mulher de Lula" seria candidata. "Qual o nome dela?", perguntou Sueli. "Vilma", disse Késsia. Sueli rebateu: "Vou votar em Vilma".