O drama de quem fica

Desalento e resistência marcam a vida de familiares de vítimas

DE SÃO PAULO

Cristiane Cavalcante de Sousa, 41, guarda duas fotos do marido: uma estampada numa camiseta e outra tamanho 3x4, colada num móvel no canto da sala, acima de um altar improvisado. "Todos os dias eu olho para a foto dele e digo: 'Neguinho, vai ter Justiça'."

Mas nove meses se passaram desde que Raimundo Barbosa dos Santos, 38, e um colega, José Hairton de Andrade, 52, piauienses que vieram a São Paulo trabalhar, foram atropelados enquanto pintavam uma ciclofaixa de madrugada, no Tucuruvi (zona norte). A Justiça parece estar distante.

A atropeladora, Juliana Cristina da Silva, hoje com 29, estava embriagada e tentou fugir. Submetida ao bafômetro, apresentou resultado de 0,85 miligramas de álcool por litro de ar expelido –dirigir com níveis acima de 0,34 mg/l é crime. Ela foi presa em flagrante e pagou fiança R$ 15,8 mil. Quase um ano após a ocorrência, a motorista ainda não foi denunciada pelo crime. Ela aguarda em liberdade.

Com pensão do INSS e cestas básicas que recebe como doação, Cristiane sustenta os quatro filhos: Ana Vitória, 9, Thiago, 7, Arthur, 4 e Maria Cecília, 2. Ela conta ter sido chamada para trabalhar como faxineira, "mas como eu vou fazer? Só o dinheiro para alguém cuidar dos meus filhos enquanto isso... Vão me cobrar R$ 20, R$ 30".

Marcus Leoni/Folhapress
Cristiane Cavalcante de Sousa, 41, viúva de Raimundo Barbosa dos Santos, 38, em sua casa
Cristiane Cavalcante de Sousa, 41, viúva de Raimundo Barbosa dos Santos, 38, em sua casa

Sentada no sofá de uma casa de dois cômodos na Brasilândia (zona norte de São Paulo), de paredes de concreto aparente, Cristiane chora ao falar do marido, "um paizão, trabalhador, inteligente", mas seca as lágrimas. "Eu vou à luta."

Os filhos mais velhos assistem à entrevista. O mais novo está no quarto –entre o cômodo e a sala não há porta e é possível observar que ele apenas finge dormir. A vizinha escuta, num volume alto, canções de Odair José.

"E as famílias, e os filhos, e a dor, e a saudade? E a Justiça que não tem?", questiona. "Você tem que ter o pé no chão, se não você arreia. E eu não vou. Não vou esmorecer. Vai ter punição, mesmo que demore", diz Cristiane, que conta sonhar com abraços e beijos do "neguinho".

Já Teresa Mendes Lisboa, 43, afirma, resignada, ter perdido a esperança. A mulher de José Hairton, "um homem sonhador, que conseguia tudo que botava na cabeça e amava assistir ao jornal e contar as notícias", diz que não tem "alegria para mais nada na vida". "Não me acostumo de jeito nenhum. Eu vejo direitinho ele abrir a porta e entrar, vejo ele andar dentro de casa."

Mãe de filhos de 15 e 12 anos de José Hairton, que tinha mais quatro de outro casamento, ela diz ter perdido o emprego de doméstica após a morte do marido por "faltar muito ao serviço para resolver as coisas". Ela também sustenta a família com a pensão do INSS, mas agora pensa em sair de sua casa, em Francisco Morato (48 km de São Paulo), para voltar ao Piauí.

Marcus Leoni/Folhapress
Teresa Mendes Lisboa, 43, viúva de Jose Hairton de Andrade, 52, morto no dia 18 de outubro
Teresa Mendes Lisboa, 43, viúva de Jose Hairton de Andrade, 52

Cristiane e Teresa dizem que não receberam indenização da empresa para a qual seus maridos trabalhavam, a Sinalta Propista, e que havia irregularidades no trabalho deles. Elizabeth Cannizzaro, sócia da empresa, diz que a empresa pagou, sim, as indenizações, e nega que houvesse irregularidades.

Juliana Cristina da Silva, a motorista, não quis dar entrevista. Sua advogada, Odette Haddad, tampouco. "Não há processo ainda. Não tem o que falar."

* * *

A luta de Cristiane e Teresa deve demorar, a julgar por crimes de cinco anos atrás. Dois casos emblemáticos e que geraram grande comoção –o de Vitor Gurman, morto aos 24 anos na Vila Madalena, e Miriam e Bruna Baltresca, mãe, 58, e filha, 28, mortas próximo ao shopping Villa Lobos– estão sem conclusão. Os motoristas ainda não foram punidos.

No dia 23 de julho de 2011, Vitor voltava de um jantar na casa de uma amiga, na Vila Madalena (zona oeste), quando foi atropelado, na calçada, por Gabriela Guerrero. Ele morreu dias depois. Guerrero não fez o teste do bafômetro. À Folha, na época, disse ter bebido uma margarita.

A perícia concluiu que a velocidade do carro estava entre 62 e 92 km/h, numa via cuja velocidade máxima era de 30 km/h. A motorista afirma ter perdido o controle do carro porque tentou segurar o namorado, embriagado, no banco do passageiro.

Vitor era "cheio de amigos, adorado, alto astral", define seu pai, o administrador de empresas Jairo Gurman, 58, que se engajou na causa contra a bebida na direção. "Cinco anos depois, as saudades são muito grandes. Não tem essa de 'um tempo para minimizar a dor'", diz. "As pessoas às vezes falam que imaginam o que a gente está passando, mas não conseguem imaginar."

Marcus Leoni/Folhapress
Jairo Gurman, pai de Vitor, atropelado na Vila Madalena em 2011
Jairo Gurman, pai de Vitor, atropelado na Vila Madalena em 2011

O Ministério Público denunciou Guerrero, 33, por dolo eventual. Se a Justiça acatar, ela será julgada num tribunal de júri. Para o advogado dos Gurman, Mauricio Januzzi, o julgamento deverá ser marcado só daqui a um ano –seis anos após o crime.

"Não acho que o processo seja moroso. Esse acidente –repito, esse acidente– também foi uma tragédia para a vida dela", afirma o advogado de Gabriela Guerrero, José Luis de Oliveira Lima. "Há uma sede de um julgamento rápido por alguns setores da sociedade e da imprensa. Mas o processo é complexo, várias testemunhas foram ouvidas e diligências foram feitas. Naturalmente tem um trâmite maior." Ele nega que ela estivesse embriagada e diz que o "Judiciário vai reconhecer que ela não agiu com dolo". "As provas falam isso. Tenho tranquilidade."

Nilton Gurman, tio de Vitor Gurman, encampou a luta e é um dos principais líderes do movimento Não Foi Acidente, contra a legislação de crimes de trânsito em vigor, com o objetivo de aumentar a punição aos atropeladores.

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Já Rafael Baltresca, 37, filho de Miriam e irmão de Bruna, não fala mais publicamente sobre o assunto, embora tenha sido o principal articulador do movimento no início. "Ele se desiludiu com a Justiça, o lobby das empresas de bebida e a imprensa", diz seu tio, Manuel Fernandes, 67, cunhado de Miriam e tio de Bruna.

As duas andavam em direção a seu carro no dia 17 de setembro de 2011 após um passeio no shopping, quando foram atropeladas pelo bibliotecário Marcos Alexandre Martins. O bafômetro apontou 0,4 miligramas de álcool por litro de ar expelido.

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Manuel Fernandes, cunhado e tio de Miriam e Bruna Baltresca
Manuel Fernandes, cunhado e tio de Miriam e Bruna Baltresca

"Cinco anos depois, quem se lembra?", pergunta Fernandes. "As pessoas esquecem e fica a sensação de impunidade. Sua família sofre, você vê as pessoas sentirem falta de quem ama, e a Justiça não faz nada. É como se fosse aquela música 'tá lá, só mais um corpo estendido no chão'. Acabou."

A Justiça decidiu em fevereiro de 2014 que Marcos Alexandre Martins iria a júri popular, respondendo por homicídio doloso. Mas não há previsão de quando isso pode acontecer. Um recurso do réu levou o processo à 2ª instância e ainda não houve nova decisão. Januzzi, também advogado dos Baltresca, estima que o júri deverá ser marcado no próximo semestre.

Advogado de Marcos Alexandre Martins, Luiz Fernando Prioli diz que o motorista "não quer falar sobre o acidente, que o abala muito" e que hoje ele não dirige mais. Prioli diz que a legislação antiga permitia a direção até 0,6 mg/l –o que é verdade (o advogado da família rebate dizendo que testemunhas descrevem a embriaguez visível do motorista). "A acusação de dolo eventual é uma ficção do Ministério Público para dar uma resposta à sociedade", afirma Prioli.

"Ele está solto até hoje e nossa família simplesmente foi destroçada", diz Fernandes, que descreve Miriam como uma mulher generosa e "do bem" e Bruna, advogada, como "super alegre, festeira, que queria viver a vida a todo vapor". "Nunca mais nos reunimos porque elas não estão presentes. Ninguém aceita, todos acham que a vida acabou."

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"Sincero e trabalhador", o gari Alceu Ferraz, 61, saiu de casa, em Mauá (27 km de São Paulo) para limpar a rua de madrugada no centro de São Paulo e não voltou mais. Às 0h30, a estudante Hivena Queiroz Del Pintor Vieira, então com 24 anos, o atropelou e matou. A versão dela: saía da casa de uma amiga em Higienópolis quando foi abordada por assaltantes. Na fuga, acabou batendo em algum objeto, mas não entendeu que havia atropelado alguém. Ela registrou um B.O. de tentativa de assalto e voou para Cuiabá (MT), de onde é, no dia seguinte.

A mulher de Ferraz não quis dar entrevista: "dói muito lembrar", disse ao telefone. Segundo sua filha, Claudia Ferraz Vieira, 41, a mãe foi a mais afetada: eram casados havia 41 anos. "Minha mãe dependia muito dele, afetivamente e também por coisas práticas. Ela não dirige e ele resolvia todos os problemas."

Apesar de o crime ter acontecido há mais de um ano, ainda não houve denúncia formal do Ministério Público, que pediu diligências à polícia, como um laudo da velocidade do veículo. Ou seja, na prática, não há processo, apenas o inquérito policial, que indiciou a estudante por homicídio culposo, lesão corporal (porque outro gari foi ferido), fuga de local e omissão de socorro.

Avener Prado - 16.jun.2015/Folhapress
Corpo do gari Alceu Ferraz, 61, morto em atropelamento na av. São João, no centro de SP
Corpo do gari Alceu Ferraz, 61, morto em atropelamento na av. São João, no centro de SP

Um policial que trabalhou na investigação e que não quis se identificar diz acreditar que a motorista havia ingerido bebida alcoólica naquela noite –segundo ele, testemunhas da festa onde ela estava afirmam que lá havia bebida. Mas é impossível provar essa hipótese, já que a estudante foi intimada e se apresentou dias depois do crime.

"A gente fica pensando: 'o que mais precisa?' É público e notório que ela atropelou meu pai, ele morreu, ela fugiu e não prestou socorro", diz a filha. Seu pai deixou três filhas e quatro netos –o quarto ele não chegou a conhecer.

O advogado da motorista, Artur Osti, afirma que "é evidente que não passou de um acidente, de uma tragédia tanto para ela quanto para a família". "Não existe indício de que havia ingerido bebida alcoólica. Ela está aguardando e, se eventualmente for o caso de ser denunciada, vai se apresentar à Justiça e dar todos os esclarecimentos", afirma. Ele diz que por opção própria a estudante não dirige mais.

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"A Anariá acordava de manhã, dançava e abria a janela para o sol entrar e mexia comigo, me chacoalhava para vida", diz, sorrindo, seu marido, o biólogo Sávio Mourão, 34, pouco mais de um mês após perder a mulher. Anariá Recchia foi morta aos 32 anos no dia 15 de maio deste ano –os dois haviam se casado em 1º de maio do ano anterior. Mourão chora enquanto se lembra dela e a entrevista é interrompida algumas vezes.

Marcus Leoni/Folhapress
Sávio Mourão, 34, viúvo de Anariá Recchia, 32
Sávio Mourão, 34, viúvo de Anariá Recchia, 32

"A Anariá é meu amor. Ela é puro amor. Uma mulher muito feliz e com brilho próprio, inteligente, que tem o dom de conversar com as pessoas com suavidade e doçura", afirma, ainda usando o presente para referir-se a ela.

Com a naturalidade resignada de quem já tinha feito a conta antes, ele diz que os dois viveram juntos "três anos, um mês e nove dias". Os dias, meses e anos seguintes foram interrompidos quando Erick Silveira dos Santos, 35, atropelou Anariá, Sávio e o ator Thiago Amaral, 33, amigo do casal.

Os três estavam num bar próximo à casa de Anariá e Sávio, na rua Cardeal Arcoverde (zona oeste), já pagando a conta, quando o motorista os atingiu, dentro do bar, às 23h45. Ele tentou fugir, mas foi impedido por pessoas que estavam na rua. O bafômetro acusou 0,77 mg de álcool por litro de ar expelido. O carro não pertencia a Santos, que dirigia sem habilitação.

Marcus Leoni/Folhapress
Thiago Amaral, 33, sobreviveu a um atropelamento no dia 15 de maio em Pinheiros; sua amiga, Anariá Recchia, 32, morreu
Thiago Amaral, 33, sobreviveu a um atropelamento no dia 15 de maio em Pinheiros; sua amiga, Anariá Recchia, 32, morreu

O motorista foi preso em flagrante, mas solto porque sua prisão, provisória, excedeu o prazo de dez dias sem ter sido convertida pela Justiça em prisão preventiva, configurando constrangimento ilegal. Ele ainda não constituiu advogado. A Folha o procurou no endereço que ele forneceu à polícia. O apartamento, porém, pertencia à sua avó, que morreu há mais de um ano, segundo funcionários do condomínio. Eles afirmam também que Santos não frequentou o edifício no último ano.

O motorista ainda não foi denunciado pelo Ministério Público. O procurador do caso, Hidejalma Muccio, pediu diligências à polícia, como o testemunho de pessoas que viram o crime, imagens de câmeras e o esclarecimento da posse do veículo. Por enquanto, diz ele, as evidências, como "a embriaguez, por si só", não permitem que Santos seja denunciado por dolo eventual.

O advogado da família, Marcelo Feller, afirma que a combinação de uma série de fatores nesse caso configura, sim, dolo eventual, como a alta velocidade, a embriaguez, a ausência de CNH e um carro possivelmente roubado. Além disso, diz ele, acredita-se que o motorista estava tirando um racha –informação relatada à imprensa na ocasião por algumas testemunhas, que agora a família procura. "Se isso não é dolo eventual no trânsito, nada mais é", afirma.

Marcus Leoni/Folhapress
Grupo se reúne em Pinheiros, zona oeste, para homenagear Anariá Recchia, 32, morta em atropelamento em maio de 2016
Grupo se reúne em Pinheiros, zona oeste, para homenagear Anariá Recchia, 32, morta em atropelamento em maio de 2016

Como outros familiares de vítimas, Sávio começou a se engajar no movimento pela conscientização de motoristas –criou o grupo "Viva Anariá". Também pretende homenagear a mulher envolvendo-se em causas que ela acreditava, como a feminista. No sábado (16), dois meses após sua morte, amigos e familiares se reuniram no local do crime –rua Cardeal Arcoverde, 1.574– para inaugurar um mural colorido em memória a ela, decorando o asfalto e a calçada com cores.

"A dor da perda da Anariá é eterna. Arranca um pedaço da gente, deixa um buraco, uma cratera gigante", diz Sávio. "A gente casou e queria ter uma vidinha tranquila. Era só deixar o tempo passar e ser feliz." (JULIANA GRAGNANI)