Perfil: Hillary Clinton

Inquieta e belicosa, Hillary 'não desiste nunca'

Hillary Clinton, então líder de classe do Wellesley College, em retrato de 1969 Lee Balterman/The Life Premium Collection/Getty Images
Hillary Clinton, então líder de classe do Wellesley College, em retrato de 1969

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hillary Rodham Clinton é a personagem política americana na ativa que está na ribalta principal do país há mais tempo.

Ela se tornou figura nacional em 31 de maio de 1969, quando, como oradora da turma de ciência política na formatura no tradicional Wellesley College, rebateu a fala do paraninfo, o senador republicano Edward Brooke. Mereceu reportagem na revista "Life" e em todas as agências de notícias.

"Não estamos interessados em reconstrução social; queremos reconstrução humana", disse ela a Brooke, o primeiro negro eleito ao Senado.

Foi um choque. Hillary por anos havia sido militante da ala liberal do Partido Republicano, de Nelson Rockefeller e John Lindsay. Nunca tinha sido considerada radical, muito menos de esquerda, como pareceu naquele dia.

Ela nasceu em 26 de outubro de 1947, num subúrbio de Chicago, onde viveu até ir para Wellesley, em que sempre se destacou por ser excelente aluna e estar envolvida em múltiplas atividades cívicas e de organização estudantil. Seu pai, pequeno industrial do setor têxtil, tinha posições conservadoras.

Na campanha presidencial de 1964, em que o republicano Barry Goldwater foi massacrado nas urnas por Lyndon Johnson devido a posições extremamente direitistas, Hillary trabalhou como "Goldwater girl".

Em retrospectiva, ela creditou sua epifania política ao movimento pelos direitos civis e à campanha contra a Guerra do Vietnã.

O discurso de Wellesley chamou a atenção não só da mídia mas também de líderes de grupos de centro-esquerda, que a procuraram para engajá-la. Ela se integrou a vários deles, e não mudou mais de posição ideológica.

Em 1970, estudante de Direito em Yale (onde conheceu o marido, seu colega de curso), outro discurso, este para a Liga das Mulheres Eleitoras, voltou a merecer destaque pela contundência de suas posições contra a guerra.

Com uma braçadeira negra em sinal de luto pela morte dias antes de estudantes na Kent State University, ela argumentou que o Vietnã estava transformando universitários indiferentes à política em militantes.

Na profissão, especializou-se em direito das mulheres e das crianças, em especial casos de custódia. Fez estágios em escritórios famosos pela militância em favor das liberdades civis.

Participou (com Bill) da campanha presidencial de George McGovern contra Richard Nixon em 1972. Dois anos depois, trabalhou como assessora parlamentar na comissão especial do impeachment de Nixon na Câmara, onde se realçou e atraiu o interesse de vários deputados.

O impeachment não chegou a ser votado porque Nixon renunciou antes, mas o nome de Hillary se tornou respeitado em Washington.

Dirigentes do Partido Democrata antecipavam sua candidatura à Câmara em 1976, quando, como descreveu na autobiografia, resolveu "seguir meu coração, e não minha cabeça": casou-se com Bill e se mudou para o Arkansas, onde ele fez carreira.

Um dos Estados mais pobres e caipiras do país, o Arkansas não tinha nada a ver com a cosmopolita e sofisticada mulher que foi lecionar direito penal na universidade local, em Fayetteville (atualmente com cerca de 80 mil habitantes). Mas as chances de Bill crescer politicamente ali eram grandes.

De fato, ele subiu rapidamente. Após ter perdido a eleição para a Câmara em 1974 (sua única derrota eleitoral, num pleito apertado contra um deputado que costumava receber ¾ dos votos), elegeu-se procurador-geral em 1975 e, três anos depois, governador do Estado.

Hillary não dedicou muito tempo nem às funções públicas do marido nem às de primeira-dama do Arkansas ao longo de oito anos. Tornou-se sócia da maior banca de direito do Estado, trabalhando com patentes e propriedade intelectual, e prosseguiu com o ativismo pro bono pelos direitos das crianças.

Ela também se aventurou em empreendimentos de negócios pecuários e imobiliários, que mais tarde lhe dariam enormes dores de cabeça: quando já estava na Casa Branca, vários deles, de aparência suspeita, foram investigados e ficaram conhecidos como caso Whitewater.

No Arkansas, teve em 1980 sua única filha, Chelsea, que já lhe deu dois netos, Charlotte e Aldan.

A Presidência Clinton foi cheia de controvérsias, e Hillary teve papel central em quase todas. Desde a campanha de 1992, quando várias mulheres denunciaram relações extraconjugais com Bill, até o fim, em 1998, quando ele foi absolvido no Senado em processo de impeachment, acusado de ter mentido em juízo sobre o escândalo Monica Lewinski, a estagiária com quem ele teria se envolvido sexualmente.

Ela permaneceu publicamente solidária ao marido nas tormentas de suas infidelidades. Mas as agruras não se originavam só do casamento e das preocupações legais derivadas dos negócios no Arkansas. Na política, também sofreu ataques impiedosos.

Ela não se contentou com as tarefas habituais de primeira-dama. Bill a incumbiu de coordenar uma reforma do sistema nacional de saúde, que lhe proporcionou grande proeminência.

Seu projeto, conhecido como Hillarycare, era audacioso por garantir seguro-saúde universal aos cidadãos americanos, inclusive para portadores de doença pré-existentes, e virou alvo de ataques irados de conservadores.

Inquieta e belicosa, Hillary respondeu com vigor e denunciou uma "vasta conspiração de extrema direita" contra projetos progressistas do casal. Ela se tornou uma das vítimas preferidas do crescente movimento conservador radical que agora desemboca em Donald Trump.

Se a reforma do plano de saúde não deu certo, outras iniciativas suas no período se concretizaram, como programas de prevenção e auxílio em casos de violência doméstica, e de desburocratização de adoções.

Em 2000, Hillary se elegeu senadora pelo Estado de Nova York com maioria de 55%. Votou a favor da invasão do Iraque, decisão que lhe é cobrada até hoje. Integrou a comissão de Defesa e se aprofundou em temas de segurança e relações exteriores.

Reelegeu-se em 2006 com 67% dos votos, e passou a organizar sua campanha presidencial para 2008, considerada a favorita absoluta.

Excesso de confiança, erros estratégicos elementares e dificuldades com seus principais aliados causaram sua derrota para Barack Obama na disputa renhida e muitas vezes agressiva pela candidatura do Partido Democrata.

Obama a nomeou para o Departamento de Estado, onde teve desempenho polêmico, que ainda lhe rende problemas e elogios. Deixou o cargo em 2013, e a partir daí ocupou-se da também controvertida Fundação Clinton (sobre a qual pesam suspeitas de conflitos de interesses, uma vez que muitos de seus doadores, inclusive governos estrangeiros, têm negócios com o governo americano) e da campanha presidencial que agora chega ao fim.

A campanha, talvez a mais brutal da história, ressaltou dois pontos centrais de sua personalidade. Um, que até Trump reconheceu como qualidade, é a resiliência ("ela não desiste nunca", disse ele).

O outro lhe tem custado muito. É a tendência para tentar encobrir fatos desfavoráveis, muitos deles motivados por pessoas próximas, às quais tenta proteger de maneiras que levantam suspeitas de desonestidade.

Nos anos 1990, entre outros, foi o casal amigo Susan e Jim McDougal, pivôs do caso Whitewater. Agora, é sua mais antiga e fiel assessora, Huma Abedin, e o ex-marido dela, Anthony Weiner, investigado pelo FBI por crimes sexuais na internet, em cujo computador foram achados e-mails potencialmente comprometedores para Hillary.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA, livre-docente em comunicação pela USP, é editor da revista "Política Externa". Foi correspondente da Folha em Washington.